Cid Moreira não só topou posar numa banheira para a Caras, como repetiu o ensaio

Publicado em 04/10/2024

Voz que inspirou obediência e crença no telespectador brasileiro por mais de 26 anos à frente do principal noticiário do país, Cid Moreira teve sua trajetória relembrada nesta quinta-feira (3), quando nos deixou. Em análise sobre essa grande figura, disse eu à CNN Brasil, em conversa com Elisa Veeck, Pedro Duran e Basília Rodrigues, que se Deus tivesse fisicamente uma voz, seria a voz de Cid Moreira. Fico a imaginar Moisés no Monte em conversa com o grande Criador, naquela encenação clássica de uma voz – a do Cid – saindo das nuvens.

Não é à toa que a gravação da Bíblia em formato de audiolivro faz tanto sucesso na voz dele.

É claro que eu, como qualquer cidadão, pedi que ele me dissesse “Boa Noite” na primeira vez em que conversei com ele, ainda por telefone. Repeti o pedido, como criança diante de picolé, quando tive a oportunidade de encontra-lo pessoalmente, por ocasião do lançamento das primeiras gravações bíblicas feitas por ele, ali num antigo hotel na av. Duque de Caxias, ao lado da sede da Folha, onde eu trabalhava.

Entre as boas histórias sobre Cid relembradas em seus obituários, evidentemente está a inesquecível capa da revista Caras, e certamente nenhuma outra edição da revista causou mais impacto que aquela, em razão da foto em si, do personagem, até então tão recluso, e do momento, pré-Instagram ou qualquer outra rede social. Era ainda o primeiro ano da Caras no Brasil, a primeira publicação obcecada por explorar os mais diversos ângulos das casas dos famosos, o que deslumbrava seus leitores.

De repente, você tem o apresentador do Jornal Nacional, dono daquela voz toda, com as pernas desnudas erguidas de uma banherira de espuma, obra de Marcelo Tabach. Ali estava a desconstrução daquela figura absolutamente respeitada ao longo de anos no Jornal Nacional. O que não se contou sobre o famoso ensaio é que Cid não só topou a proposta da Caras, à época dirigida pelo saudoso Nirlando Beirão, como, segundo me contou o próprio Nirlando, repetiu o ensaio a pedido da revista.

Tempos após a publicação e seu gigantesco impacto, Nirlando buscou pelas mais famosas imagens da revista para uma edição especial e exposição, mas não encontrou os cromos, material original para ampliação. Embora tenha tomado pito do então chefe, Alberico de Souza Cruz, Cid nunca escondeu que adorou o resultado do ensaio. E, convidado a repetir as fotos para a exposição, topou.

Essa seria uma façanha impossível hoje, num mundo calçado em precauções impostas pela comunicação corporativa que auxilia empresas e pessoas nas relações com a imprensa.  Já faz alguns anos que todo funcionário contratado pela Globo tem de pedir autorização à Comunicação da empresa para dar uma entrevista ou fazer fotos dentro do contexto que cabe à emissora. Um ator que esteja fazendo um filme ou uma peça fora da Globo, evidentemente tem total liberdade para trabalhar a divulgação dessas obras, mas se a matéria for rigorosamente sobre o trabalho dele na emissora, a equipe da asssessoria de imprensa é obrigatoriamente consultada.

Hoje, Cid só faria as fotos para a Caras sob aval da direção de jornalismo, e a equipeda revista teria de se submeter à presença de uma profissional da Comunicação da Globo acompanhando todo o ensaio e entrevista. Certamente uma foto como aquela seria imediatamente vetada, a fim de não ferir a edulcorada imagem do homem que apresentava o jornal da casa.

Dos momentos inesquecíveis de Cid na bancada, aquele que considero mais chocante foi a leitura de um texto em condição de direito de resposta dado a Leonel Brizola e lido por ele. Mas Cid era tão perfeito como locutor, que embora proferisse palavras árduas contra seu patrão, Roberto Marinho, um conteúdo que desafinava de seu timbre para os nossos ouvidos, também desafiava a entonação que ele sabiamente dava àquilo como mera leitura de texto, visivelmente contrariado e longe do engajamento exibido com maestria na bancada do telejornal que ele ajudou a erguer. Ao pé deste texto, publico um link do YouTube relembrando o episódio.

Cid Moreira e Sérgio Chapelin não tinham qualquer interferência no texto que liam, produzido sempre por terceiros. E quando o saudoso  Evandro Carlos de Andrade assumiu o Jornalismo da Globo, egresso do jornal O Globo, com carta branca de Roberto Marinho, uma de suas primeiras decisões foi a troca de locutores por jornalistas na bancada dos telejornais, inclusive o tradicional JN. Ainda que os jornalistas àquela época não dessem um pio além do que liam no teleprompter, Evandro queria que fosse dado aos leitores das notícias diante das câmeras a autonomia e o domínio editorial sobre o que estavam lendo para o público.

Foi então que Cid e Chapelin foram trocados por William Bonner e Lillian Witte Fibe – sucedida por Fátima Bernardes dois anos mais tarde. Boni, o José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, ainda vice-presidente de Operações da Rede Globo, resistiu à ideia, temeroso de que a troca fosse um choque muito grande para a larga audiência do telejornal. Por ele, Bonner teria entrado na vaga de Chapelin, ao lado de Cid, que demoraria mais a sair de cena daquele espaço, dando tempo para que o telespectador digerisse a mudança. Mas Boni foi voto vencido por Evandro, cuja gestão representou também o início de maior independência do Jornalismo da direção da Globo.

O ensaio da Caras certamente aborreceu a direção da época, mas a descontração ostentada naquelas imagens acabou sendo essencial para inspirar a imagem de um sujeito menos sisudo do que o JN lhe fazia parecer, dando-lhe, futuramente, o posto de coadjuvante de Mr. M, o mágico misterioso, em quadro de enorme sucesso no Fantástico, e nas narrações da Jabulane, a bola da Copa da África do Sul, em 2010.

Os tempos hoje já não idolatram uma voz empostada como aquela que fez o reinado de Cid Moreira, mas ele seria ainda, aos 97 anos, aclamado por qualquer narração que ainda viesse a encarar, inspirando credibilidade e admiração.

 

Assuntos relacionados: