Crítica de TV

Por que Beleza Fatal representa um passo à frente no universo das novelas?

Comportamento da heroína e sua disposição para tomar atitudes controversas aos olhos do público devem influenciar o gênero

Publicado em 21/03/2025

por Vitor de Oliveira

No país da telenovela, reinventar o gênero é uma tarefa nada fácil. Mas a reinvenção é fundamental para que a novela permaneça sendo o produto mais assistido e comentado do país por tantas décadas a fio.

Desde os anos 1960, há quem diga que o gênero se encontra em desgaste e seu fim já é decretado desde então. No entanto, mesmo com o advento das novas mídias e pulverização da audiência, a telenovela continua sendo o produto mais assistido do País. Mesmo não tendo a repercussão de outrora, nenhum outro programa, da TV aberta ou fechada, consegue alcançar seus índices de audiência.

Recentemente, o gênero ultrapassou as fronteiras da TV aberta e foi parar no streaming, sempre com boa audiência e repercussão, como Verdades Secretas 2 (2021) e Todas as Flores (2022), ambas do Globoplay e, mais recentemente, Pedaço de Mim (2024), primeira incursão do melodrama da Netflix, embora, na minha humilde opinião, não a considere telenovela por sua curta duração de 17 capítulos.

Finalmente, chegamos a Beleza Fatal, de Raphael Montes, primeira novela da Max, que chegou como um tsunami e virou a nova mania nacional. Mas o que Beleza Fatal tem de diferente das outras novelas atuais? Por que recolocou o gênero de volta ao posto dos assuntos mais comentados do País?

Há várias respostas possíveis para essa pergunta: a duração mais curta, de apenas 40 capítulos, ajuda a concentrar a trama e dar um ritmo mais ágil e dinâmico, semelhante ao das séries, evitando a chamada “barriga” (momento de lentidão no avanço das tramas) das novelas convencionais.

Além disso, a novela soube utilizar de maneira despudorada todos os elementos do melodrama, fundamentais ao bom folhetim: vingança, catarse, suspense, viradas, conflitos, barracos, segredos de família, grandes paixões e até um “quem matou?” em sua reta final.

Tudo isso aliado a um texto inspirado e contemporâneo, direção competente e cuidadosa de Maria de Médicis e um elenco afiadíssimo, que defende muito bem seus personagens cativantes e multidimensionais. E claro, algo que não poderia faltar para conquistar o público: uma super vilã.

Sim, Lola Argento é uma força da natureza e tem todas as características que uma vilã precisa para cativar o público atual: inteligência, bom humor, charme, muitas frases de efeito e uma intérprete que se apropria de todos esses elementos e faz a festa, entregando uma atuação que atinge a perfeição. Muitos aplausos para Camila Pitanga!

Tudo lindo, mas até aí nenhuma grande novidade. Lola garantiu seu lugar no panteão das grandes vilãs, cultuadas pelo público, desde Odete Roitman e Perpétua, passando por Flora, Nazaré e Carminha. A grande inovação de Beleza Fatal, no entanto, reside da reinvenção de uma outra personagem, tão importante quanto a vilã, mas nem sempre tão memorável: a mocinha.

Houve um tempo em que as protagonistas das novelas, tradicionalmente chamadas de mocinhas, eram o centro dos holofotes, as preferidas do público, as namoradinhas do Brasil, tendo como expoente máximo a romântica Simone de Selva de Pedra (1972), de Janete Clair, única novela até hoje a obter 100 pontos de audiência em um capítulo.

Embora a autora, maior referência do gênero até hoje, sempre flertasse com a figura do anti-herói, como Cristiano Vilhena, da mesma Selva de Pedra, ou Carlão, de Pecado Capital (1975) e Herculano Quintanilha, de O Astro (1977), era para as mocinhas que o público torcia. E, tradicionalmente, elas sempre foram um exemplo de qualidades e virtudes. Não à toa surgiram tantas Simones, Palomas, Daras, Eduardas e Jades no Brasil, batizadas com esses nomes por conta das heroínas de suas respectivas novelas.

Com a glamourização da figura das vilãs, a mocinhas foram se apagando aos poucos, afinal nunca podiam ultrapassar certos limites éticos e, com isso, ficavam em desvantagem em relação às antagonistas, sempre mais espertas, engraçadas e espirituosas. Claro que, vez por outra, surgia alguma mocinha com mais personalidade como Tieta ou as Helenas de Manoel Carlos, com seus segredos e falhas de caráter.

Mas, via de regra, mocinha tem que ser boa e vilã tem que ser má. João Emanuel Carneiro brincou com essa fronteira de opostos em A Favorita (2008), ao não revelar de cara para o público quem era a mocinha e quem era a vilã. Em Avenida Brasil (2012), o mesmo autor criou Nina, uma mocinha soturna e vingativa, mas que nunca ultrapassou grandes limites éticos, não deixando dúvidas para o público de que Carminha era a grande antagonista da trama.

Em Beleza Fatal, Raphael Montes ousa ao expandir os limites éticos da protagonista. E isso é um enorme risco porque, por mais que amemos os vilões, o que nos faz acompanhar uma novela é a torcida para os heróis, afinal eles são o senso comum, a régua moral da sociedade com a qual o grande público de identifica.

Em alguns momentos, Sofia/Júlia, a heroína de Beleza Fatal, vivida brilhantemente por Camila Queiroz, se comporta de maneira semelhante ou até pior do que a da vilã, Lola. Seu senso de justiça é questionável e seus métodos são pra lá de polêmicos, inclusive se utilizando de sexo para atingir seus objetivos, algo considerado tabu em se tratando das mocinhas sempre corretas e incorruptíveis.

Além disso, Sofia mente, engana, chantageia, maltrata funcionários, renega a família e faz justiça com as próprias mãos. Em dado momento a gente ama e odeia Sofia na mesma intensidade. Beleza Fatal estica tanto a corda moral de sua mocinha a ponto de fazer com que o público quase se perca dela, mas logo depois cria um ato de redenção que a salva, o que chamamos de “save the cat” no jargão “roteirístico”.

O autor também foi muito hábil na construção da terceira protagonista, Elvira, genialmente interpretada por Giovanna Antonelli. Ela é a rede de proteção da novela. Embora seja uma adorável trambiqueira, o público não tem dúvidas de sua boa índole e isso garante o equilíbrio dessas forças antagônicas: Elvira de um lado, Lola do outro e Sofia no meio. Caso alguém deixe de torcer por Sofia, certamente continuará a torcer por Elvira.

Esse jogo perigoso e instigante de pôr em xeque o caráter da heroína representa a grande inovação de Beleza Fatal e faz da novela um programa imperdível para quem aprecia o bom e velho novelão aliado a uma ousadia inédita para o gênero. Depois de Sofia, as mocinhas de novela nunca mais serão como antes.

VITOR DE OLIVEIRA é autor e dramaturgo. Roteirista das novelas O Astro, I Love Paraisópolis e Jesus e Redator Final do humorístico Vai que Cola.