Se algum estrangeiro perguntar de que se trata Doutor Castor, não hesite em dizer que é uma espécie de O Poderoso Chefão em versão jogo do bicho. E é curioso e autoexplicativo notar que a série tenha sido gerada no núcleo de esportes da Globo e não no seu jornalismo policial.
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Produção original do Globoplay, a série documental tem como fio condutor o envolvimento do personagem central com a contravenção, com o time de seu bairro, o Bangu Atlético Clube; e depois, mas não menos importante, a dedicação à sua escola de samba, a Mocidade Independente de Padre Miguel.
O ótimo documento audiovisual serve também como um minitratado sociológico sobre as coisas estranhas que aconteciam – ou será que ainda acontecem? – no Rio de Janeiro a olhos vistos pela mídia, pela polícia e pela alta sociedade nas esferas da contravenção, do futebol e das escolas de samba.
Tudo isso deságua numa série de acontecimentos obscuros envolvendo crimes diversos, policiais, matadores, tráfico de armas, máquinas de videopôquer e cassinos clandestinos.
História
Houve uma época em que jogadores de futebol falavam à imprensa abertamente sobre prêmios pagos em dinheiro vivo, juízes de futebol eram perseguidos pelos dirigentes (e até agredidos) em campo sob a mira de cinegrafistas e fotógrafos, e artistas diversos sambavam na avenida ou em camarotes patrocinados pelo ilegal jogo do bicho.
Ao ver as imagens principalmente dos anos 1980 aos anos 1990, percebemos como foi ampla a presença destas figuras um tanto folclóricas na mídia, agindo livremente e contando com inexplicável complacência judicial.
Castor de Andrade era tratado como um capo carismático, representante de um certo tipo do subúrbio carioca. Seu visual e porte hoje nos remetem imediatamente ao figurino do Agostinho Carrara vivido pelo ator Pedro Cardoso em A Grande Família.
Conhecido “empresário” do jogo do bicho, dirigente de clube e de escola de samba, Castor de Andrade era foco de sucessivas entrevistas e figura frequente de programas esportivos e de entretenimento, tanto na Globo como na concorrência. Era uma espécie de gângster midiático.
Isso acontecia com naturalidade, sem haver qualquer explicação plausível para a audiência, que era colocada diante de um cartola do Bangu e também dirigente da escola de samba com aura de celebridade. Com o clube de futebol ele nunca foi campeão, mas a Mocidade Independente de Padre Miguel sagrou-se vencedora em carnavais inesquecíveis.
Como autêntica saga de um Don Corleone (personagem do escritor Mario Puzo em O Poderoso Chefão vivido no cinema por Marlon Brando), mesmo fora dos campos de futebol e do brilho do Sambódromo, a história de Castor de Andrade seguiu trágica ainda após sua morte – em 1997, aos 71 anos de idade, vitimado por um infarto.
O clã dos Andrade continuou envolvido num legado de disputas por território, com assassinatos e atentados, até bem recentemente, com mais um trágico desdobramento ocorrido em dezembro de 2020 em Angra dos Reis (RJ).
A série
A direção de Doutor Castor é de Marco Antonio Araujo, editor de esportes do Jornal Nacional, e a série traz, em quatro episódios, dezenas de depoimentos de gente que conviveu com Castor de Andrade.
O envolvimento do profissional da Globo com a área também proporciona deliciosas entrevistas pinçadas dos arquivos da casa, tendo atletas e técnicos anunciados por apresentações clássicas da TV com âncoras como Fernando Vannucci (1951-2020) e Léo Batista. Tem também repórteres como Tino Marcos e Marcelo Rezende (1951-2017).
Há relíquias para os boleiros, tais quais as cenas de duelos que entraram para a história do futebol carioca envolvendo o time do Bangu. O clube, sob a presidência do próprio Doutor Castor, contratou jogadores conhecidos nacionalmente como Cláudio Adão, Mauro Galvão e até o craque Neto, numa curiosa participação em 1986.
Vale destacar que o resgate das entrevistas externas e programas dos anos 1980 e 1990 é um trabalho bastante louvável de recuperação, tanto de imagens quanto de som original.
Em 1990, os dirigentes das escolas de samba, todos sabidamente ligados ao jogo do bicho, participaram de uma mesa redonda sobre os desfiles do Carnaval daquele ano comandada por Fátima Bernardes.
Uma entrevista que Doutor Castor deu a Jô Soares, em 1991, então no SBT, é outra preciosidade. O bicheiro foi um convidado totalmente à vontade no seu papel de bon vivant, tal como fosse um showman, com entrevistador e plateia risonhos, merecedor de aplausos e parecendo perfeitamente adequado a um quadro do entretenimento.
Em depoimentos atuais, profissionais da própria TV Globo falam da figura controversa que foi Castor de Andrade. Ali Kamel, o todo-poderoso atual Diretor de Jornalismo; e José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, dono de afiliada da Globo em São Paulo, mostram opiniões diametralmente opostas sobre o personagem central do documentário e sobre as abordagens da época. Para Kamel, a TV não faria hoje as mesmas entrevistas; para Boni, a culpa é toda do “politicamente correto”.
Entre os maiores defensores do personagem, há seu advogado da vida toda, Michel Assef, e o cantor e ex-deputado federal Agnaldo Timóteo, admitindo que recebeu de Castor de Andrade dinheiro para sua campanha política.
Nos últimos episódios, brilha ainda a ex-juíza Denise Frossard, que conta detalhes curiosos da época, quando condenou Castor de Andrade e toda uma gangue de contraventores envolvida com o jogo do bicho (entre eles, também estava Anísio Abraão David, patrono da Beija-Flor). Não por acaso, ela depois trilhou a carreira política, elegendo-se deputada federal.
Doutor Castor não explica o crime nem o Rio de Janeiro, mas documenta bem como as grandes paixões nacionais podem algumas vezes estar a serviço de atividades nada ortodoxas.
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