Rafael Primot é um dos profissionais mais engajados na diversidade dentro do mercado audiovisual. Ator, roteirista, produtor e diretor, investiu pesado em inclusão na série Chuva Negra, do Canal Brasil e do Globoplay, e está em cartaz em São Paulo na peça A Herança, com temática homossexual. Embora pertença à comunidade LGBTQIA+, transformou-se em ativista no ambiente de trabalho após ter sentido na pele o preconceito ao interpretar uma travesti na série Tapas & Beijos, da Globo.
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Em entrevista exclusiva, Rafael Primot relembra episódios de discriminação sofridos na emissora quando se transformava em Stephanie. Nos corredores, ele era assediado e tratado como objeto. A caminhada até o local das gravações tornou-se um tormento para o ator.
“Dentro do próprio trabalho eu sentia na pele o preconceito. Chegava com as meninas, me maquiava com elas, e no momento em que saía do camarim e ia até o set gravar eu sentia a maneira como as travestis eram tratadas, como objeto. As pessoas tiravam sarro, zombavam, perguntavam quanto era o programa. Era bastante desgastante. Saía exausto do trabalho. Fiz durante quatro anos, e no último eu já estava cansado, o que me fez pensar muito sobre isso, tanto que na época escrevi uma peça de teatro chamada Uma Vida Boa, baseada em uma história real de um homem trans que mudou a legislação nos Estados Unidos por causa da morte dele, de maneira violenta. Comecei a me aproximar muito dessa questão e virei praticamente um ativista por causa do que vivi, porque também estava aberto a perceber isso. Eu não entrava na onda, não dizia ‘bate na minha bunda’. Achava desrespeitosa a maneira como me tratavam como ator. Não era da equipe, muito menos do elenco, mas das pessoas que me viam: ‘Ah, você que é a travesti, né? Quanto é o programa? Olha que gostosa, olha o peitão, olha a bunda!’, uma maneira completamente invasiva. Imaginei o quanto as pessoas na vida não passam por isso o tempo todo”, recorda.
À coluna, o ator revela que recusaria interpretar uma travesti atualmente para não tomar o lugar de uma artista transgênero.
“Hoje em dia, com certeza não aceitaria esse papel, mas, olhando para a importância histórica, dez anos atrás estávamos em outro momento, em que precisávamos ter feito dessa maneira para incluir dentro da Globo, ainda que em um programa de humor. Todo mundo tinha um tom cômico, mas a personagem queria casar e se casou com o bicheiro [Tijolo, interpretado por Orã Figueiredo]. O texto vinha muito bem escrito, não era caricato no sentido de pejorativo. Tenho orgulho disso. Pela primeira vez uma travesti, em um programa da Globo em horário muito visto, era tratada com respeito dentro da história. Hoje em dia é inviável de fazer, não é necessário, há muitas trans e travestis para fazer um papel como esse”, conta Primot.
“Não acho que os atores não podem fazer tudo, mas acho que no momento não podemos fazer tudo. Acho que é uma fase, e depois que a gente tiver atrizes trans fazendo mulheres cis em novela das oito, quando isso já estiver normalizado e naturalizado, a gente [cis] pode voltar a fazer [trans], mas é o momento de dar espaço ao pouco espaço que elas têm. Temos que sair um pouco de cena, abrir mão de fazer essas personagens até daqui 10, 20 anos, quando seremos pessoas e corpos em que podemos fazer tudo, como é a batalha de escalar gays fazendo héteros. Temos muitas atrizes lésbicas fazendo personagens héteros. Ainda há preconceito, ‘sei que é gay, não sei se convence’. Os próprios executivos e produtores torcem o nariz. O Marco Pigossi falou muito que o Silvio de Abreu o botou dentro do armário de novo, ‘se você se assumir gay não vai trabalhar’. Quantas outras pessoas não ficam nessa? Não somos só isso. Pertenço à comunidade LGBTQIA+, também tenho as minhas fragilidades e meus preconceitos que vou vencendo para tentar fazer parte de um mercado extremamente preconceituoso. Tento quebrar a engrenagem pela parte de dentro. A gente só precisa querer mudar”, conclui.
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