Atrações popularescas sempre permearam a televisão brasileira. Nos anos 60, o grande precursor foi o famoso O Homem do Sapato Branco, apresentado pelo clássico Jacinto Figueira Jr, que misturava casos policiais, com apelos populares, e escabrosos. A evolução disso, porém, surgiu nos anos 90, com o Aqui Agora, do SBT.
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Inspirado no formato argentino Noticientro e no Aqui e Agora, exibido em 79 pela Tupi, o programa apresentado por Ivo Morganti e Christina Rocha tinha forte presença policial e grande participação dos repórteres. E nisso, claro, surgiram as atrações puramente policiais, chamadas, até hoje, de filhotes do Aqui Agora.
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O formato, tanto de programas nacionais quanto locais, é praticamente o mesmo e extremamente conhecido: reportagens justiceiras, fortes, contundentes, mostrando as mazelas dos políticos como forma de denúncia.
Hoje, tais atrações não são tão chocantes como foram nos anos 90 e exercem, de certa forma, importantes serviços para uma população cada vez mais carente de direitos e benefícios.
Outra característica bastante clara é que, em sua grande maioria, os programas são apresentados por homens altos, fortes, com pinta de super-herói, fazendo uso de linguagem popular e de fácil acesso. Com a mudança de público, porém, algumas emissoras estão ousando ao tirar imagens chocantes de crimes e investindo, principalmente, no poder de comunicação das mulheres.
Hoje, segundo estudos do Kantar Ibope, cerca de 55% do público no horário do almoço, entre 12h e 14h, é composto por mulheres. A maioria, donas de casa ou mesmo desempregadas por consequência da crise financeira que assola o país. Por isso, o número de mulheres apresentando programas populares/policiais tem crescido e virado uma tendência na TV.
Como tudo começou
O início dessa história começa em 2010. Apenas neste ano, uma mulher começou a comandar um programa policial/popular na TV brasileira. Foi Analice Salles, que na época passou a apresentar o “Na Mira”, da TV Aratu, afiliada do SBT na Bahia. Tal programa era pesado e chegou a ter sua retirada do ar pedida pelo Ministério Público da Bahia por conta dos excessos, mas tudo foi resolvido com um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta).
Analice fez sucesso na época. Tanto que, em 2013, foi contratada pela RecordTV. Seu contrato terminou no ano passado e ela, atualmente, está fora do ar. Apesar disso, sua importância é inegável: ela abriu caminho para que mais mulheres atingissem este posto.
O mais notório caso em nível nacional foi de Fabíola Gadelha, conhecida popularmente por Rabo de Arraia. Discípula de Marcelo Rezende, saudoso jornalista falecido em setembro deste ano, Fabíola chegou a ancorar uma versão do Balanço Geral para boa parte do Brasil pelas manhãs. Acabou não dando certo e, em seis meses, foi substituída por Luiz Bacci. Atualmente, Gadelha é repórter e apresentadora eventual da versão de sábado do Cidade Alerta.
Hoje, são vários exemplos no país de mulheres neste tipo de atração: Silvye Alves apresenta a versão de Goiás do Cidade Alerta, que chega a ser primeiro lugar numa Goiânia, localidade em que Globo, SBT e RecordTV brigam ponto a ponto pelas melhores colocações.
Já Débora Moraes ancora o Ronda Geral, na TV Tribuna/SBT do Espírito Santo. Antigo programa barra pesada de se ver, atualmente ele está cada vez mais popular e menos violento – afinal, os anos passam e os conteúdos se moldam ao sabor do público.
Também precisamos citar outras que ancoram programas populares na faixa do almoço, como Neila Medeiros, do SBT Brasília, que já foi queridinha de Silvio Santos anos atrás e que voltou a ter prestígio na capital federal.
Mas quem mais se destaca atualmente nesse crescimento são duas: Isabele Benito, do SBT Rio de Janeiro, e Nikole Lima, da TV Brasília/RedeTV!. O sucesso delas na faixa em que vão ao ar pode ajudar a explicar esse boom. Para nos aprofundarmos no assunto, precisamos falar sério. E de violência.
O ‘boom’ do feminício
A Lei do Feminicídio foi criada em 2015, com base numa série de estudos feitos pela advogada criminalista Luiza Eluf. Hoje, segundo estatísticas do Ministério da Justiça, o feminicídio é o crime de ódio que mais mata mulheres no Brasil.
São oito assassinatos por dia – um a cada três horas. Além disso, de dois em dois segundos, uma mulher é violentada física ou psicologicamente no país – e contamos aí estupros, espancamentos, entre outros crimes.
50% desses crimes são cometidos contra mulheres pobres das classes C, D e E. Reconhece essa demográfica? Pois é: o grosso do público de programas populares/policiais vem justamente das classes C, D e E.
Mas o que é feminicídio e como ele é caracterizado? “No feminicídio, a mulher é igualada a um objeto. É um crime de gênero que ocorre em razão do homem se achar superior a mulher de alguma forma a menosprezando e a diminuindo, a ponto de tirar o seu bem maior: a vida”, afirma a advogada criminalista Rafaela Melo.
Para a advogada, o estouro desse tipo de crime está diretamente ligado ao machismo e à crescente onda do feminismo. “O estouro do feminismo tem assustado estes homens machistas”, completa Rafaela.
Para Isabele Benito, apresentadora do SBT Rio, a impunidade também ajuda muito a explicar o crescimento. “Nada é feito. Por mais que tenhamos leis, tenhamos canais de denúncia, ninguém faz um trabalho de conscientização em relação a essa matança de mulheres, essa violência contra a mulher, principalmente nas classes mais baixas. Não que outras mulheres não sejam afetadas, mas as mulheres negras e pobres sofrem muito e que precisa ser combatida de forma educacional e com punição. Tem lei? Tem, mas ainda é muito branda”.
Se 55% do público é composto por mulheres e os crimes contra a mulher, como o feminicídio, só crescem, quem melhor para falar com este público? Uma própria mulher. É questão de identificação. Nikole Lima, do DF Alerta, reforça essa tese: “Nós já provamos que somos capazes de protagonizar vários papéis ao mesmo tempo: mães, mulheres, companheiras e donas de carreiras bem administradas e exitosas. Muitos são os exemplos. Pena que ainda tenhamos que conviver com tanto machismo no Brasil”, afirma.
“Meu maior desafio até aqui foi quebrar resistências mais conservadoras e principalmente das próprias mulheres que ainda têm dificuldades em nos enxergar desempenhando funções que sempre foram tão masculinas. Mas elas já entendem que isso acabou. O mundo mudou. E estamos aqui dando o nosso recado e provando que somos capazes de comandar um programa da amplitude e importância editorial do DF Alerta com muita tranquilidade”, completa Nikole.
As mulheres que chegaram lá
Isabele Benito está no SBT Rio desde 2013. À época, substituiu Rogério Forcolen e, na teoria, seria uma substituição temporária. Mas ela ficou e hoje é, certamente, a que mais se destaca entre as apresentadoras do SBT fora de São Paulo. Marcando médias entre 7 e 9 pontos, ela virou uma pedra no sapato do Balanço Geral RJ, da RecordTV – conforme citamos na reportagem da semana passada.
Atualmente, além do telejornal popular, ela faz o Cariocou, atração semanal de entretenimento, aos sábados. Recentemente, sua contratação pela concorrente foi novamente cogitada. Para Isabele, a tendência do crescimento de mulheres nesse tipo de atração é normal.
“É uma tendência natural. Eu fui a primeira mulher a fazer esse tipo de programa no Rio, é normal que isso cada vez mais, e ainda bem, ganhe espaço. A gente é maioria, e temos a necessidade de nos vermos representada. Acho que basta ter espaço, e estamos vendo muitas mulheres lutando, conseguindo, e quando conseguimos, mostramos o nosso valor”, opina.
Isabele explica o motivo do SBT Rio ser um êxito como é hoje. “É um contexto todo o diferencial do SBT Rio, de equipe mesmo. De liberdade para trabalhar. E que resulta na apresentação. Fazemos um trabalho onde não tem um tipo de personagem, nem um tipo de censura. Fazemos como se estivéssemos na casa de cada telespectador. O povo se vê representado diante dos absurdos que acontecem. É a naturalidade, com liberdade, de que a gente chama de jornalismo na veia”, conclui.
Quem também está em ótima fase é Nikole Lima. Até fevereiro, ela era repórter do DF Alerta. No entanto, Fred Linhares, titular da atração, foi para a RecordTV. Interinamente ela foi colocada e acabou agradando muito. Atualmente, a TV Brasília/RedeTV! chega a ficar na vice-liderança de audiência na capital federal durante a atração que vai ao ar das 11h45 às 13h.
Recentemente, Nikole virou notícia nacional por mandar indiretas para a concorrência de um jeito bem humorado. Mas, antes disso, a realidade foi dura: ela era a repórter da madrugada, horário em que os crimes mais chocantes costumam acontecer.
“Nunca me intimidei com o tipo de trabalho que escolhi fazer. Nunca baixei a cabeça nas ruas. E jamais me senti ameaçada pelos piores bandidos na madrugada. Não sou mulher que foge do barulho de bala. Malandro não estrila e acho até que eles se sentem pequenos diante do poder que toda mulher sabe que tem. O DF Alerta já nasceu diferenciado. O que sempre nos distinguiu dos outros programas no Brasil foi exatamente a coragem, pioneirismo e ousadia para tratar de temas importantes e que hoje se tornaram a principal pauta de todas as mídias, inclusive as redes sociais”, afirma.
Por fim, ela comenta que sempre tenta não ir para o discurso fácil do ódio, como muita gente costuma fazer. “Minha presença na condução do programa sempre priorizou trocar o discurso fácil do ódio por reflexões mais oportunas e que contribuam efetivamente para o progresso e o avanço social de um país que ainda tem tanto a superar”, completa.