Crítica de TV

O telespectador mal-humorado, os sites noticiosos de TV e a histeria com a audiência de Mania de Você

É curioso como a cobertura televisiva reflete as ansiedades e preocupações das emissoras

Publicado em 23/09/2024

Quando a nova telenovela das nove estreou, no dia 9 deste mês, surgiu aquilo que há muitos anos já virou rotina quando uma obra entra em cartaz na TV: a preocupação de quem não tem nada a ver com a audiência. Depois de uma temporada de remakes no horário nobre, eis que a Globo decidiu colocar no ar uma trama inédita, solar, litorânea e contemporânea. Para isso, convocou João Emanuel Carneiro, um autor respeitado pelo público e pela crítica, que teve a ideia de criar Mania de Você, uma telenovela que se propõe discutir sobre obsessão.

Para parte do público, um alívio. Após a desinteressante Travessia e a sonolenta Renascer, finalmente apareceu aí um texto ágil, personagens bem construídos, complexos, dúbios e misteriosos. Ações que se resolvem em poucos capítulos sem enrolar. Para outra parte, uma chatura que só. Atores recém saídos de outras obras, trama boba, com muitos vilões e muita maldade.

Quem tem dado o recado, gritam os que torcem contra ou que gostam de polêmica para obter cliques, é a audiência. Com seus 23 pontos no ibope — número que o telespectador mal-humorado e (mais ainda) os sites especializados em televisão insistem em chamar de “inaceitáveis” — em menos de duas semanas no ar, Mania de Você já foi demonizada e rotulada como “fiasco”. A fórmula mágica teria sido esgotada, e a telenovela das nove estaria naufragando em um bote salva-vidas furado.

É curioso como a cobertura televisiva reflete as ansiedades e preocupações das emissoras e, mais ainda, como esses sites e seus respectivos jornalistas afirmam que sabem (sem nunca indicar fontes), aqui e ali, que há brigas entre diretores por conta do baixo desempenho das obras.

Com Mania de Você, o que não faltou nos últimos dias foram comentários sobre a audiência e os rumores em torno dos cortes, da edição e até de uma suposta crise no alto escalão da emissora carioca (ah, e uma ou outra reunião desses executivos planejando, com muito desespero, como salvar a trama). Em menos de um mês, a telenovela foi tachada de fracassada por não alcançar os patamares de Pantanal. Mas, analisando com mais atenção, a pergunta que se faz é: onde a Globo publicou ou anunciou a meta que uma telenovela deve ter?

Quem escreve notícia sobre TV ou gosta de acompanhar esse tipo de cobertura, ainda está preso aos anos 1970 a 2000, quando novelas chegaram a ter entre 40 a 70 pontos no ibope. Essas discrepâncias devem significar algo para quem banca a brincadeira, mas para o telespectador realmente fazem diferença?

Dada a histeria que tomou conta da Globo, a resposta é um retumbante sim. Por conta dessas diferenças que só deveriam inquietar executivos bem pagos e a equipe de marketing que precisa prospectar patrocinadores, novelas são encurtadas, mutiladas e sofrem intervenções absurdas. A bem criada Um lugar ao sol, com seu texto primoroso, é um dos maiores exemplos que temos sobre o assunto. Além de capítulos picotados, mal editados e com personagens que perdiam espaço indo do nada a lugar algum, a trama de Lícia Manzo, que deveria ser uma das melhores da sua carreira, foi desconfigurada e se transformou em um grotesco emaranhado de equívocos, com sua péssima divulgação, duração cortada brutalmente e depois aumentada sem dar sentido. Um inteiro descaso.

O ibope de algumas novelas, como Babilônia, de Gilberto Braga, que também caiu no terror das notícias de ibope, não foi impressionante, mas deveria ser? Isso quer dizer que o público está rejeitando em massa esses estilos ou revela algo completamente alheio às escolhas dramatúrgicas e estéticas? Em outras palavras, existe uma correlação direta entre o gosto do público e os números?

A resposta automática seria um sim, mas isso é enganoso. Soaria até verossímil se estivéssemos no Brasil dos anos 1970, onde o público era considerado homogêneo, mas não podemos esquecer que, naquela época, a Globo tinha quase um monopólio do entretenimento. O que a Globo impunha se tornava o gosto e se traduzia em números por falta de alternativas.

Cinquenta anos depois, essa ideia é ainda mais falaciosa. A própria TV Globo concorre com ela mesma, com suas dezenas de canais fechados (com Telecine, GNT, GloboNews, entre outras) e o Globoplay, plataforma que o público pode ver qualquer novela a hora que quiser, inclusive Mania de Você. Entram nessa conta as outras emissoras, como SBT, Record e Band; outros streamings, como Netflix, Max e Prime; e até a mudança de estilo de vida, com pessoas estudando mais, trabalhando mais, se exercitando mais e muito mais conectadas com seus aparelhos celulares, de olho em conteúdos de influenciadores e de outros usuários nas redes sociais. Diante de todo esse cenário, Mania de Você ainda abocanha quase 17 milhões de telespectadores apenas em São Paulo. Será mesmo que isso é um fracasso?

O Brasil mudou, e fica difícil, talvez até impossível, falar em “o público”, assim como é arriscado, talvez irresponsável, fazer generalizações sobre “o gosto”, como se público e gosto ainda existissem de forma singular.

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