Teleanálise

O incômodo com o remake de Vale Tudo

Criaram um misticismo em cima da obra de Braga e, sobretudo, veem em Glória Pires, Regina Duarte e Beatriz Segall deusas intocáveis, irretocáveis e insubstituíveis

Publicado em 25/07/2024

O texto dramático não pertence a um único autor ou interpretação. Isso vale tanto para o cinema como para o teatro e também para a televisão. A versão de um texto não deve ser restrita às intenções do autor original, e os atores têm a liberdade de colocar aqui e ali algum artifício no corpo, na voz ou na interpretação, afinal, são reprodutores de tipos e não meros robôs inventados por roteiristas. O diretor pode idealizar ângulos diferentes e até cenários opostos a cada leitura do texto. Isso é tudo o que o telespectador mediano não sabe.

Desde que foi anunciado o remake de Vale Tudo surgiram reclamações contra a releitura da obra de Gilberto Braga, e que agora, segundo comunicado da TV Globo, está sob cuidados de Manuela Dias. O tumulto é algo admirável. Há tantos defensores da primeira versão da história, que foi ao ar em 1988, que recriar o drama da filha que dá um golpe na mãe, vende a casa e vai morar no Rio de Janeiro para o que ela chama de “crescer na vida” parece até crime hediondo.

Nas redes sociais, já tem gente dando como certo o fracasso de Vale Tudo. Trata-se de uma proliferação. Em suas palavras, é possível sentir a raiva, o desejo do desastre, o sorriso de quem espera, com muita arrogância, para dizer “eu avisei” no primeiro sinal de fiasco. São pessoas contra a ideia, contra a autora escolhida, contra atores, contra diretores e até contra a cor de pele de quem vai atuar. Da ordem da comparação. Criaram um misticismo em cima da obra de Braga e, sobretudo, veem em Glória Pires, Regina Duarte e Beatriz Segall deusas intocáveis, irretocáveis e insubstituíveis.

Os telespectadores esquecem que a obra não vai ser deletada dos arquivos da Globo, ou seja, está lá, no Globoplay, para quem quiser acompanhar a primeira versão quantas vezes quiser. Está lá, no imaginário dos nostálgicos, para quem levanta a bandeira da primeira versão. Nenhuma releitura é capaz de apagar a comoção de um original.

Que Vale Tudo é um clássico ninguém pode negar. Talvez até seja a melhor telenovela brasileira. Mas ela não está acima de outras obras fabulosas que foram sucesso em suas produções quando foram remakes, a exemplo de Anjo Mau, A Viagem, Cabocla, Sinhá Moça, Mulheres de Areia e tantas outras. O que seria do cinema se as obras de Jane Austen não fossem refilmadas? O que seria do teatro se as peças de Tchekhov, Ariano Suassuna, Shakespeare e Sófocles só pudessem ser encenadas uma vez?

Remakes devem ser vistos como uma continuação da interpretação plural e dinâmica construída ao longo do tempo, onde o texto não é propriedade de uma única visão ou grupo de atores. Entram nessa conta novas técnicas de filmagem, efeitos especiais e narrativas contemporâneas, possibilitando novas camadas de significado e relevância para diferentes públicos a ponto de aprimorar a qualidade do produto final.

Telenovelas são parte importante da cultura popular e da memória coletiva de uma sociedade. Remakes ajudam a manter essas histórias vivas, apresentando-as a novas gerações que talvez não tenham tido acesso à versão original. Além disso, são as releituras que oferecem a oportunidade de corrigir representações inadequadas ou ausentes na versão original, promovendo maior diversidade e inclusão no elenco e nas narrativas.

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