Após a exibição de suas duas primeiras temporadas, A Decepção e A Ingratidão, a novela-série Reis, de Raphaela Castro, termina na segunda-feira (6). Um dos roteiristas dessa primeira parte do projeto, o também ator e dramaturgo Marcos Ferraz, conversou com o Observatório da TV sobre a produção e o filão bíblico, que é alvo de muito preconceito. “É um elitismo cultural, como se este tipo de entretenimento fosse menor”, declara.
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Marcos Ferraz tem mais de 20 anos de atuação nos palcos, e para a televisão já escreveu projetos tão diferentes quanto Gênesis e Reis e as séries de animação Irmão do Jorel e Sítio do Picapau Amarelo. No universo jovem, esteve entre os responsáveis pelo texto da série Juacas, da Disney. Confira o bate-papo:
FÁBIO COSTA – Sítio do Picapau Amarelo, Anittinha, Jorel, Juacas… Na experiência de fazer roteiros para público infantil e infantojuvenil, foram muitas as influências de produções anteriores (como versões do Sítio na TV Globo, novelas de Antonio Calmon etc.)? Como se comunicar na dramaturgia com esse público que já nasce conectado?
MARCOS FERRAZ – Independente das faixas etárias, o público gosta de uma boa história, sobretudo, bem contada. É claro que existem especificidades. Um mesmo tema pode e deve ser abordado de jeitos diferentes para o público pré-escolar, para o infantil alfabetizado, para o juvenil e adulto. Desconfio que o caminho seja não subestimar a audiência. Todas as salas de roteiro das quais participei tinham essa preocupação.
Você cita o Antonio Calmon… Cara, aquilo que ele e a equipe ( acho que tinha Patricia Travassos, Euclydes Marinho, Maria Carmem Barbosa, Mauro Rasi, uma porção de gente bacana) fizeram no Armação Ilimitada é genial. Até hoje aquilo é totalmente anti-careta, revolucionário. A direção criativa do Guel Arraes. Acho que tem uma coisa do frescor também. Pra se comunicar com esse público você precisa ter cabeça aberta, entusiasmo pela vida.
FC – As produções da dramaturgia bíblica da Record TV sofrem muito preconceito, de parte do público e até da própria imprensa, se formos ver. Primeiro Gênesis e agora Reis: além da devida contextualização com um estudo profundo de História, Religião, Arqueologia etc., existe alguma diferença do desafio da criação e do desenvolvimento de personagens de histórias bíblicas, especialmente aqueles que são criação da novela e não do Livro Sagrado?
MF – Sim. Existe um preconceito. O que, a meu ver, é uma bobagem. É um elitismo cultural, como se este tipo de entretenimento fosse menor. Histórias bíblicas são poemas sobre a fundação da humanidade sob a organização de um determinado povo, de uma determinada cultura.
E, para além da importância que essas histórias têm em si, trata-se também de um nicho ( se é que podemos chamar assim) de mercado muito poderoso. São histórias conhecidas no mundo ocidental todo. E o grande barato é exatamente esse desafio de pegar essas histórias muitas vezes complexas e distantes da nossa realidade cotidiana e torná-las de fácil entendimento. Porque, no fundo, elas são isso, histórias populares que foram sendo contadas através dos tempos.
FC – Como é a parceria de Raphaela Castro com a equipe de roteiristas colaboradores? A divisão de trabalho entre vocês se deu por núcleos, por cenas, por capítulos…? Vocês já concluíram uma terceira temporada, ou estão escrevendo conforme gravam?
MF – É uma parceria ótima. A Raphaela tem um jeito muito delicado e preciso para conduzir o “barco”. Série, minissérie, novela é uma coisa de louco. Como diria a Shonda Rhimes, você vai colocando o trilho enquanto o trem está em movimento. Se você parar de colocar, o trem descarrila. E o pior é que esse trem está lotado de gente! De profissionais que dependem daquele trabalho para sustentar suas famílias, do público que não vê a hora de chegar em casa, ligar a televisão e relaxar assistindo uma história… E tudo isso só acontece se você entregar o roteiro na hora hora certa.
Então, respondendo sua pergunta mais especificamente (risos), a Rapha geralmente já tinha toda a estrutura na cabeça e passava pra nós, que escrevíamos as cenas. Ora ela dividia por núcleos, ora por cenas, ora ela escrevia quase tudo e nós revisávamos. Eu só escrevi as duas primeiras temporadas de Reis.
FC – Existe alguma história que você gostaria de contar numa telenovela, de inspiração bíblica ou não, e quem sabe na Record TV possa ter a chance?
MF – Ah, muitas! De inspiração bíblica eu gosto muito das metáforas de ‘Jonas e a Baleia’ e de ‘Daniel na Cova dos Leões’. Acho que renderiam boas minisséries.
Já em novelas contemporâneas acho que a concentração de riqueza em contraponto à pobreza extrema, a exploração de terras indígenas, esse embate natureza X ganância humana é um tema que está se fazendo presente no nosso imaginário e daria um bom folhetim.
FC – Profissional de teatro há bastante tempo, como você enxerga o momento de desvalorização da cultura, piorado pelas dificuldades econômicas decorrentes da pandemia? Aproveitando: para teatro, algum projeto em curso?
MF – O teatro sempre vai ser resistência. Acho que o teatro só não esteve em crise quando nasceu, na Grécia. Mas nada é tão ruim que não possa piorar, não é mesmo? (risos) A inexistência de uma política pública para o setor cultural nesse governo federal certamente foi um projeto para desmantelar todas as cadeias de produção que foram construídas há anos no audiovisual, nas artes cênicas, artes plásticas… em tudo.
Nós passamos quatro anos de terra arrasada, e no meio disso, vem uma pandemia. Foi a tempestade perfeita. Mas como eu disse no começo da resposta, quem é de teatro está acostumado, tem casca grossa. O teatro é a última trincheira, a gente não se entrega.
Para o teatro estou pensando em escrever um musical com as canções dos mineiros. Nada biográfico. Viajar por aquelas canções, aquelas letras lindas, aquele universo… tenho alguns flashes, mas tudo ainda está embrionário.