Em entrevista ao Notícias da TV, o autor de novelas Silvio de Abreu, ex-diretor de Teledramaturgia da TV Globo, não poupou críticas às histórias feitas atualmente, e argumentou com o contexto das medidas tomadas pela empresa para fazer economia nos últimos anos, o que impactou na qualidade dos cenários, dos elencos, dos figurinos… “Tudo é inferior ao que era feito anteriormente”.
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Confira algumas das passagens mais significativas do depoimento do veterano ao jornalista Daniel Castro, publicado nesta quarta-feira (18). Para poder responder a algumas das perguntas, que versaram sobre as produções atuais, Silvio, que declarou não estar acompanhando novelas, assistiu a alguns capítulos das três inéditas da TV Globo: Garota do Momento, Volta por Cima e Mania de Você.
Queda de audiência, streaming e necessidade de novas formas de medir o ibope
“São vários fatores [para a queda de audiência]. Primeiro é que, na pandemia, as pessoas começaram a descobrir o streaming. E essa ideia de você parar tudo o que está fazendo numa determinada hora para assistir novela também caiu.”
“E também, você não sabe [mais] onde as pessoas assistem. A não ser que eu esteja enganado, a audiência [medida pela Kantar Ibope] vem daquele horário [em que a novela é transmitida]. Então, naquele horário, 21% ou 22% assistem. Fora daquele horário, as pessoas devem assistir em outros veículos. Assistem no streaming, provavelmente assistem no Globoplay, assistem só o trecho que interessa. É um estudo que precisa ser feito. Porque o Ibope já não abrange tudo, está defasado.”
“As razões pelas quais as audiências estão baixas têm que ser vistas em uma análise mais ampla de mercado, não artisticamente. Artisticamente, eu acho que a coisa fica muito clara. Eu não tenho visto as novelas, mas, a partir da hora que você me convidou para falar disso, eu fui assisti-las. As três novelas que estão no ar. E o que reparei? Que tudo é inferior ao que era feito anteriormente.”
“Primeiro, os investimentos financeiros devem ser muito menores. Eu não tenho ideia de quanto, mas muito menores, porque os cenários são muito ruins. Os cenários que você vê hoje nas novelas, exceto a das nove, são cenários de novelas que os outros canais faziam, bem inferiores. Os cenários são de novelinha de quinta categoria, são só paredes.”
“Você não vê [cena] externa, quase não tem. É tudo dentro de um cenário, é tudo na cidade cenográfica. E as cidades cenográficas são muito inferiores às que a gente tinha antes. A iluminação é chapada, não tem nenhum estudo maior de iluminação, é tudo muito lavado, você não tem um degradê de luz pra criar um clima dentro de uma cena.”
Ausência de história e de curadoria de dramaturgia, além da falta de emoção
Para Silvio de Abreu, as novelas hoje em dia não têm uma história para contar, que envolva o público a cada capítulo e desperte a vontade de assistir ao capítulo do dia seguinte, têm sido uma sucessão de cenas que não se conectam. A falta de alguém que exerça a função de curador da dramaturgia, para ver problemas que o autor não vê no dia a dia do trabalho, é apontada pelo entrevistado.
“Atualmente, o que as novelas não têm é uma história. Elas têm cenas. Uma cena em que as pessoas falam um monte de coisas, e vai para outra cena. Não tem uma história que engancha, que vai engatando uma cena na outra, que vai formando uma curiosidade, uma cadeia, uma emoção, e que você não pode deixar de assistir amanhã. Isso não tem mais.”
“Hoje tem comercial em qualquer lugar. A gente tinha uma preocupação de a cada 15 minutos fazer um comercial, para que a pessoa não saísse da frente [do televisor], ficasse esperando. E o final da novela também não tem mais gancho. Não tem mais gancho porque não tem narrativa, não tem história.”
“Quando a gente fazia novela nos anos 1980, 1990, 2000, elas tinham uma história, e os personagens serviam àquela história. As novelas hoje são pessoas falando, falando coisas triviais: ‘Não vou na festa’, ‘vou na festa’, ‘não quer casar com fulano’, ‘não quer casar com beltrano’. Antes, talvez os temas até fossem parecidos, mas a qualidade do que se falava, a profundidade que os autores tentavam atingir, era muito maior.”
“Além disso, você tem um elenco e você não reconhece ninguém. E esse alguém que você não conhece também não tem experiência. Então, a cena não cresce. O diálogo é medíocre, a atuação é medíocre, e quando você coloca um ator de mais experiência, ele diminui a capacidade dele pra não entrar em confronto com o outro que é pior. Porque representar é um jogo, você atira a bola, e o outro atira de volta para você, e você cria um clima baseado em emoção.”
“E onde está essa emoção? Você assiste à novela e não tem nenhuma emoção, não é engraçada, não é triste, não é interessante, não é nada. É um monte de gente sem talento falando. Agora a culpa é de quem? É deles [atores e diretores]? Não, eles estão fazendo o que podem fazer.”
“A gente tinha uma curadoria de texto que lia todos os capítulos e opinava sobre aquilo. Não é que interferia para mudar. Opinava quando via algum ruído que poderia provocar alguma coisa errada dentro da narrativa da novela. E hoje não tem mais isso.”
“As pessoas entregam os capítulos, e [a Globo] só verifica se tem alguma coisa politicamente incorreta. Então, tem muito mais uma censura sobre o que é ou não apropriado se dizer para não ofender fulano, ciclano, beltrano ou essa ou aquela religião ou etnia. Não tem um acompanhamento de dramaturgia.”
E esse acompanhamento de dramaturgia é essencial, porque muitas vezes você tem um autor experiente como o João Emanuel Carneiro, de comprovado talento, e ele pega caminhos errados, como pegou, e aí não tem conserto, a não ser que você tenha uma curadoria especializada pra dizer: ‘Tá errado aqui, tá certo ali, vamos por aqui ou vamos por ali’. Não é que essa pessoa sabe mais. É que essa pessoa, não estando envolvida com o processo criativo, terá uma visão muito mais clara. O autor não vai saber ver o seu erro.”
“Eu digo porque passei por isso muitas vezes e, graças a Deus, eu tinha o Gilberto Braga, o Daniel Filho, tinha gente que sabia ler e falava: ‘Oh, você tá indo errado por esse caminho, vamos por ali’. Eu ia. E fiz isso com muitos autores, fiz isso com o Walcyr [Carrasco], fiz isso com a Gloria Perez. Fiz isso com todos os autores com quem eu trabalhei lá, era a minha função, né? Não estou falando que resolveria o caso, mas que essa pessoa deveria existir.”
E quanto ao remake de Vale Tudo?
Vedete da comemoração dos 60 anos da TV Globo em 2025, a nova versão de Vale Tudo também esteve entre os assuntos abordados por Silvio de Abreu na entrevista a Daniel Castro.
“Vale Tudo é uma boa história, mas depende de que maneira vai ser feita. Acho difícil uma novela que já é tão vista, tão falada, já foi exportada, ter um grande impacto agora, porque as pessoas já conhecem a história. Mas isso não é uma sentença.”
“Eu tenho muito medo porque fiz um remake que não deu certo, que foi Guerra dos Sexos [2012]. E por que é que não deu certo? Era ruim (…)? Não, é porque as pessoas estavam acostumadas com aqueles outros atores [Fernanda Montenegro, Paulo Autran], que eram excelentes, não tinha por que mudar.”
“Quando você pega uma história que não deu certo e faz melhor, ótimo. Quando você pega uma novela que deu certo, que todo mundo adorou, que foi um baita sucesso, você vai fazer de novo e vai mudar, pra quê? Eu, particularmente, se eu fosse diretor, não faria. Não sou contra remake, mas vai dar certo? Não tenho a menor ideia, é um risco.”
Sem dúvida, ainda que se possa discordar de Silvio neste ou naquele aspecto, a entrevista do novelista ao Notícias da TV abre espaço para ainda mais discussões sobre o momento atual das novelas e da TV aberta, e uma vez mais alerta para a necessidade de revermos a medição de audiência, adequando-a a novos comportamentos do público. Isso talvez faça com que não tachemos de fracasso esta ou aquela produção, hoje assim chamadas ao levar-se em conta apenas seu ibope na TV tradicional.