Por Alexandre Barbosa (*)
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A série “Cem Anos de Solidão” pode ser vista na Netflix. Se você é leitor das obras de Gabriel García Márquez pode assistir à adaptação com alegria. Caso não conheça o livro, este é um convite para entrar no mundo fantástico de Gabo.
O maior receio da legião de fãs do livro “Cem Anos de Solidão” é que a série não tratasse com carinho um dos maiores livros da literatura mundial.
Mas, depois de assistir aos 8 episódios desta primeira temporada de “Cem Anos de Solidão” na Netflix pode-se dizer que os leitores de Gabo irão gostar da adaptação.
Entre os acertos da série estão:
- Ser falada em espanhol. Alguns termos como “carajo” e “compadre”, típicos da língua espanhola, não teriam sentido se fossem traduzidos para qualquer outro idioma;
- Ter o narrador onisciente que traz, fielmente, os trechos do livro. Ali, o espectador pode apreciar a carpintaria de Gabriel García Márquez na seleção de palavras e nas descrições, cheias de sinestesia, das personagens, do ambiente, dos cheiros e das cores
- A seleção de autores colombianos que dão rostos mais fiéis ao que se imaginava que seriam Melquíades, Úrsula, Rebeca e demais Buendía
- Usar efeitos práticos em vez de recursos computacionais, pois o que é fantástico no universo de “Cem Anos de Solidão” precisa parecer real. Essa é maior atração do realismo mágico, movimento literário ao qual pertencem Gabriel García Márquez e sua obra
- Abrir com a famosa passagem “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía haveria de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo”
Após essa abertura, a narração da história segue a ordem cronológica dos fatos que se passam no livro. Os leitores vão entender: audiovisual e livro são linguagens diferentes e a narração linear vai facilitar a compreensão. Os novatos no realismo mágico terão a opção de compreender a história que dá voltas de propósito (veja, abaixo, a resenha sobre o livro).
Entre as redescobertas que a série trouxe pode-se destacar a figura de Remédios Moscote. A passagem da personagem, tanto no livro como na série, é curta. Os leitores vão se lembrar do daguerreótipo de Remédios que permanece na história tal qual os pergaminhos de Melquíades.
Na série, a interpretação de Remédios reforça a importância da jovem na trama e na vida do Coronel Aureliano Buendía.
Da mesma forma, o olhar de Rebeca, a corpulência de José Arcádio, o misticismo de Melquíades, a amargura de Amaranta, as marcas de expressão em Úrsula e os olhos sempre abertos do solitário Coronel Aureliano Buendía estão ali, vivos.
Só por essas atrações, já vale a audiência da série. E, mesmo que assim não fosse, vai ajudar a impulsionar a leitura do livro, o que é sempre positivo para a literatura latino-americana.
“Cem Anos de Solidão” é um dos maiores livros do século XX. E a série vai ajudar a mantê-lo ainda mais forte, para sempre e por todo o sempre.
A OPINIÃO DA CRÍTICA
Luiz Zanin, crítico de cinema e colunista do programa Bom Para Todos, da TVT, confessou que estava com medo da qualidade da série, mas depois de assistir aos primeiros episódios, se surpreendeu com a qualidade.
“Pelo que vi até agora, meus medos eram infundados”, disse Zanin. “Eu adorei o início da série, adorei. Principalmente porque ela abre com as palavras exatas do primeiro parágrafo do livro”, explicou à apresentadora Talita Galli.
Zanin comenta que a opção de fazer a narração da história de forma linear é um recurso que pode facilitar a compreensão. E faz um convite: “Apaixonem-se pela série ‘Cem Anos de Solidão’ e, quem ainda não conhece, vá até o livro. ‘Cem Anos de Solidão’ é uma das grandes obras da literatura mundial.”
Além de Zanin, outros leitores de Gabriel García Márquez que já assistiram à série gostaram da adaptação. É o caso da jornalista Alessandra Nalio. “Dar cara pros personagens que a gente só imaginou como seriam é maravilhoso”, relata a jornalista.
‘Cem Anos de Solidão’ disponível no streaming
Muitos anos depois, diante das telas, os apaixonados por “Cem Anos de Solidão” vão se recordar o dia da estreia da primeira adaptação do livro para o audiovisual.
A aguardada adaptação de ‘Cem Anos de Solidão para série em streaming estreou no dia 11 de dezembro, na Netflix.
Composta por duas partes de oito episódios, a série faz a adaptação do clássico livro “Cem Anos de Solidão”, do premiado escritor colombiano Gabriel García Márquez, vencedor do Nobel de Literatura de 1982. O livro é um dos mais famosos do mundo, com mais de 50 milhões de exemplares vendidos e traduzido para mais de 40 idiomas.
Em vida, Gabriel García Márquez nunca permitiu a adaptação de sua obra-prima para o audiovisual. Outros livros do autor, como Amor nos Tempos do Cólera e Ninguém Escreve ao Coronel, ganharam versão para o cinema.
O argumento, segundo García Márquez, é que toda a fantasia da obra não conseguiria ser captada pelas câmeras.
Após a morte do escritor, em 2014, e intensas negociações com os herdeiros, a adaptação foi liberada para a Netflix. O filho mais velho, Rodrigo García, trabalha com audiovisual (cinema e séries) nos EUA, o que pode ter facilitado a negociação.
Em 2024, Rodrigo também justificou a publicação do livro póstumo, “Em Agosto Nos Vemos”, que fora rejeitado pelo próprio García Márquez. Para o filho do autor, o pai era muito exigente com a própria criação e “Em Agosto nos Vemos” trazia ainda muito das qualidades do escritor e seria um presente para os leitores no aniversário de 10 anos da morte de García Márquez.
Sobre “Em Agosto Nos Vemos”, leia a resenha da jornalista Lívia Magalhães, publicada na revista-laboratório Babel, da USP, em junho.
COMO A NETFLIX ADAPTOU ‘CEM ANOS DE SOLIDÃO’
Com direção dos cineastas colombianos Laura Mora e Alex García López, a série “Cem Anos de Solidão” representa um dos projetos audiovisuais mais ambiciosos do streaming na América Latina. A série foi inteiramente filmada em espanhol e na Colômbia, com o apoio da família de Gabriel García Márquez.
Para a cineasta Laura Mora, dirigir “Cem Anos de Solidão” é uma honra e um desafio. “Como cineasta e como colombiana, tem sido uma honra e um enorme desafio trabalhar em um projeto tão complexo e que carrega tanta responsabilidade como “Cem Anos de Solidão“, afirma Laura.
Era a história da família, escrita por Melquíades inclusive nos detalhes mais triviais, com cem anos de antecipação. Foto: Mauro González /Netflix ©️2024
De acordo com Laura, o objetivo foi “sempre buscar entender a diferença entre a linguagem literária e a audiovisual, e poder construir imagens que contenham a beleza, a poesia e a profundidade de uma obra que impactou o mundo inteiro. Fizemos isso com amor e respeito pelo livro, com o apoio de uma equipe técnica e humana excepcional”, explica a diretora.
O colega de direção, Alex García López, conta que “dirigir este projeto foi um desafio e uma aventura; afinal, na vida, correr riscos é necessário para dar sentido ao que fazemos. Ao mergulhar na adaptação de ‘Cem Anos de Solidão’, minha intenção era criar algo autêntico que carregasse a estatura de uma produção internacional, porque a história merece.”
Durante a 22ª Festa Literária Internacional (FLIP) de Paraty, na Mesa “Do Livro às Telas: Cem Anos de Solidão”, os roteiristas da série da Netflix contaram como foi o desafio de adaptar para o audiovisual a obra que marcou gerações.
“Sempre que precisávamos encontrar o caminho, voltávamos ao livro. Todas as respostas estavam lá”, disseram os roteiristas.
Durante o evento em Paraty, as roteiristas Natalia Santa e Camila Brugés, além de Francisco Ramos, vice-presidente de Conteúdo da Netflix na América Latina, falaram sobre sobre o processo criativo e as complexidades de levar o universo literário de Gabriel García Márquez às telas.
As roteiristas compartilharam o que as inspirou a se envolver nesse projeto ousado, revelando os desafios e nuances de adaptar “Cem Anos de Solidão” para as telas. “É um imenso desafio dar vida a personagens que habitam o imaginário de tantas pessoas. Nossa missão foi honrar a riqueza da obra, sem perder de vista sua profundidade e magia”, comentou Natalia Santa.
“A série precisava capturar as emoções que o livro desperta, sem esquecer que estamos lidando com uma linguagem diferente. O desafio foi equilibrar a fidelidade à obra original com a criação de uma experiência visual impactante”, disse Camila Brugés, destacando a responsabilidade de adaptar o romance.
Francisco Ramos destacou a importância do legado que a adaptação deixaria. “Desde o início, alinhamos com a família García Márquez alguns pilares do projeto: ele teria gravação em espanhol e produção na Colômbia. Esses elementos não apenas preservam a essência da obra, mas garantem que o legado ressoe, promovendo um impacto cultural e econômico significativo para o audiovisual colombiano”, explicou.
Baseada na obra-prima de Gabriel García Márquez, a série acompanha as gerações da família Buendía no mítico vilarejo de Macondo, no qual as loucuras do amor, das guerras e das maldições ancestrais se entrelaçam em uma narrativa fantástica e envolvente que é uma metáfora da história latino-americana.
A adaptação pretende capturar a essência do romance e, ao mesmo tempo, tratar dos temas universais que tornaram o livro de Gabriel García Márquez um clássico atemporal lido por chefes de estado a estudantes por todo o planeta.
SÉRIE IMPULSIONA VENDA DO LIVRO
O anúncio da exibição de “Cem Anos de Solidão” aumentou a venda dos livros dede a estreia na Netflix. De acordo com Jean Faria, gerente de compras da Livraria da Vila , uma das maiores redes de livrarias do país, com 21 lojas em diferentes regiões do Brasil, as vendas de “Cem Anos de Solidão” aumentaram em 42,85%.
“Após o anúncio da série, o título se tornou o segundo mais vendido de Literatura Clássica na Livraria da Vila”, explica Faria. De acordo com o gerente, “Cem Anos de Solidão” só perde para “Em Agosto Nos Vemos”, também de García Márquez.
“Houve aumento de 42,85% nas vendas das edições do ‘Cem Anos de Solidão’“, conta o gerente da rede de livrarias que oferece três diferentes edições da obra de Gabriel García Márquez, incluindo uma comemorativa, em capa dura, dos 50 anos da publicação do livro. As outras duas são em brochura.
Para o gerente da livraria, a adaptação de livros para o audiovisual ajuda na vendas. “Houve um grande aumento nas vendas do livro ‘É Assim Que Acaba’ após a estreia do filme nos cinemas. Assim como também teve aumento nas vendas do livro ‘Ainda Estou Aqui’, de 2015, de Marcelo Rubens Paiva, após divulgação das matérias e premiações em torno do filme”, explica Jean Faria.
QUAL A IMPORTÂNCIA DE ‘CEM ANOS DE SOLIDÃO’?
O livro de Gabriel García Márquez é uma das obras mais importantes da literatura latino-americana e mundial. É o mais famoso e traduzido livro do movimento conhecido como realismo fantástico – também conhecido como realismo mágico ou realismo maravilhoso.
O realismo fantástico é um movimento literário tipicamente latino-americano e reúne autores da América Latina que publicaram obras com características semelhantes: contam histórias da América Latina, muitas vezes inspiradas em acontecimentos da realidade, mas narradas de forma tão mágica que não poderiam ser possíveis.
Entre os exemplos, uma peste de insônia que infecta toda a cidade, uma chuva de quatro anos, onze meses e dois dias ou um quarto em que a tinta não seca nunca dentro dos tinteiros, mas que é só visível para quem enxerga um velho cigano.
Além das qualidades da narração e estrutura literária, o livro permite diversas interpretações. Uma delas é que Macondo, a cidade dos espelhos, seria uma metáfora da América Latina e que as repetições de nomes e de eventos, como os peixinhos de ouro vendidos para se transformarem em novos peixinhos de ouro ou a mortalha de Amaranta, que é costurada durante o dia para ser descosturada pela noite, simbolizam os eventos cíclicos pelos quais passa a América Latina.
Há passagens explícitas, como a chegada da Companhia Bananeira, referência à multinacional latifundiária estadunidense United Fruit Co., que explorou a mão de obra latino-americana. Em “Cem Anos de Solidão”, depois de não querer negociar com os trabalhadores em greve, a Companhia Bananeira promove o massacre dos trabalhadores e os atira ao mar.
As estirpes condenadas a cem anos de solidão que não merecem ter uma segunda oportunidade na terra seriam os latino-americanos, frustrados nas cíclicas tentativas de emancipação e de caminhar pelas próprias pernas.
Veja a resenha completa do livro Cem Anos de Solidão.
Uma dica para facilitar a leitura de “Cem Anos de Solidão” é ter, sempre à mão, a árvore genealógica da família Buendía. Imprima a imagem abaixo para facilitar sua leitura da obra-prima de Gabriel García Márquez.
A SINOPSE DE ‘CEM ANOS DE SOLIDÃO’ NA NETFLIX
Após se casarem contra a vontade dos pais, os primos José Arcadio Buendía e Úrsula Iguarán abandonam o vilarejo onde moram para buscar um novo lar, mesmo temendo que os filhos nasçam com rabos de porco. Acompanhados por amigos, o casal chega às margens de um rio de pedras pré-históricas, onde fundam a cidade que batizam de Macondo. Diversas gerações da estirpe dos Buendía marcarão o futuro dessa cidade, atormentada pela loucura, amores impossíveis, guerras sangrentas e o medo de que uma terrível maldição os condene, inevitavelmente, a cem anos de solidão.
REALISMO MÁGICO
O Realismo Mágico é um movimento literário que se desenvolveu, principalmente, na América Latina. que mistura o real e o fantástico. Trata de temas que aconteceram na realidade, mas narrados de forma tão mágica, como o rastro de sangue que percorre toda a cidade até chegar à mãe do personagem assassinado ou a chuva que caiu em Macondo.
“Choveu durante quatro anos, onze meses e dois dias (…) O céu desmoronou-se em tempestades de estrupício e o Norte mandava furacões que destelhavam casas, derrubavam paredes e arrancavam pela raíz os últimos talos das plantações”
Na literatura latino-americana, esse estilo reflete a rica tradição oral e as lendas da região, ao mesmo tempo em que lida com as realidades políticas e sociais, muitas vezes
Sobre o autor
Alexandre Barbosa é editor do site TVT News, pós-doutor em Ciências da Comunicação (Unesp), Doutor em Comunicação (ECA-USP), Mestre em Jornalismo (ECA-USP), Especialista em Jornalismo Internacional (PUC-SP), Jornalista (Umesp). Autor dos livro Por uma teoria latino-americana e decolonial do Jornalismo (Editora Frutificando, 2023) e A solidão da América Latina na indústria jornalística (Alexa Cultural). Tanto o mestrado, como o pós-doc e os dois livros publicados foram inspirados em Cem Anos de Solidão
Créditos
- Fotos da produção: Mauro González e Pablo Arellano /Netflix
- Legendas das fotos da produção: trechos de “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel García Márquez (1967). Reproduzidos da edição em português da Editora Record