Sinopse

Projetado com requinte, o Edifício Paraíso, de dez andares mais cobertura, foi erguido no terreno de uma família quatrocentona no centro de São Paulo, mas desvalorizou-se com a construção do Elevado Costa e Silva – o Minhocão -, que passa à altura dos dois primeiros andares. Os herdeiros, remanescentes da aristocracia soberba, moram na cobertura: o industrial Edgard, sua mulher, Mafalda, e a filha adolescente, Estela.

Para atenuar os prejuízos com o imóvel, Edgard transformou os apartamentos dos primeiros andares em quitinetes, o que fez com que o edifício passasse a ser habitado por diferentes classes sociais. Os empregados domésticos e o zelador e sua família moram no térreo e no primeiro andar, enquanto as demais famílias, de classe média, residem nos andares acima. Quanto mais alto, maior a classe social do morador.

Os condôminos, com seus dramas pessoais, são indiferentes aos problemas uns dos outros. Os moradores dos apartamentos mal se falam, mal se conhecem. Até que Paulinho, filho da ex-freira Marta, hoje viúva, torna-se pivô de um conflito. Ele é um menino doente, com deficiência intelectual, que grita nas madrugadas atrapalhando o sono e a tranquilidade dos moradores, que se dividem entre expulsar ou não mãe e filho do prédio.

A trama inicia com o desaparecimento do interceptador do edifício. Como o aparelho permite que as ligações telefônicas sejam monitoradas, instala-se um clima de paranoia e desconfiança por parte de todos. Vários moradores acabam por denunciar pequenos delitos e desvios uns aos outros. Os dramas de cada um vão se tornando cada vez mais visíveis. É quando o delegado Sérgio passa a investigar os passos de cada morador.

O sequestro da adolescente Estela, a filha de Edgard e Mafalda, e o agravamento das crises de Paulinho, somados ao roubo do interceptador, contribuem para que os vizinhos se unam cada vez mais e passem a ser mais tolerantes entre si. Sérgio, a princípio convocado para sondar um caso de contrabando no prédio, assume a investigação do sequestro, desvendando o crime graças ao auxílio do ladrão do interceptador.

Globo – 22h
de 27 de outubro de 1975
a 30 de abril de 1976
125 capítulos

novela de Jorge Andrade
direção de Walter Avancini, Roberto Talma e Gonzaga Blota

Novela anterior no horário
Gabriela

Novela posterior
Saramandaia

GLÓRIA MENEZES – Marta
NEY LATORRACA – Sérgio
LEONARDO VILLAR – Edgard
MARIA FERNANDA – Mafalda
WALMOR CHAGAS – Gilberto
ISABEL RIBEIRO – Lúcia
RUBENS DE FALCO – Agenor
YONÁ MAGALHÃES – Kátia
ELIZABETH SAVALA – Pilar
EDSON FRANÇA – Otávio
REGINA VIANA – Dorotéia
MARCOS PAULO – Orlando
JOÃO PAULO ADOUR – Rogério
FRANÇOISE FORTON – Marina
TEREZA RACHEL – Débora
RUTH DE SOUZA – Albertina
YARA CÔRTES – Dona Carmem
ROBERTO PIRILO – Mário
SUELY FRANCO – Laís
CASTRO GONZAGA – Sebastião
IDA GOMES – Branca
SEBASTIÃO VASCONCELOS – Francisco
ELOÍSA MAFALDA – Socorro
FLÁVIO MIGLIACCIO – Osvaldo
CARMEN ALVAREZ – Cleonice
MIDORE TANGE – Midore
ANTÔNIO GANZAROLLI – Gurgel
PAULO GONÇALVES – Caio
CHICA XAVIER – Lázara
COSME DOS SANTOS – Jairo
JACYRA SILVA – Nair
MARIA DAS GRAÇAS – Jacira
HELOÍSA RASO – Arlete

as crianças e adolescentes
MARCOS ANDREAS HARDER – Paulinho (filho de Marta)
LÍDIA BRONDI – Estela (filha de Edgard e Mafalda)
GUTO FRANCO – Guilherme (filho de Gilberto e Lúcia)
RICARDO GARCIA – Bento (filho de Gilberto e Lúcia)

e
ALCÍRIO CUNHA – Ernesto
ANTÔNIO CARLOS PIRES
CARLOS FONTOURA – amigo de Jairo
CARMEM MONEGAL – Cleide (ex-noiva de Sérgio)
ESTHER MELLINGER – Dolores
FÁBIO SABAG – diretor do teatro
FRANCISCO DANTAS – Davi (pai de Débora, em flashbacks)
HORTÊNCIA TAYER – prostituta da rua
JARDEL MELLO – Dr. José
LADY FRANCISCO – prostituta da rua
LAJAR MUZURIS – Anacleto
LOURDES MAYER – Dona Olímpia (mãe de Edgard, mantida por ele em um asilo)
MARIA LÚCIA DAHL – Joana
MIRIAM FICHER – Débora (criança, em flashbacks)
OTÁVIO AUGUSTO – Henrique (falecido marido de Marta, em flashbacks)
PEPA RUIZ – Maria (acompanhante de Dona Olímpia)
REGINALDO VIEIRA – marginal
TONICO PEREIRA – Corrêa (visitante costumeiro e misterioso de Midori)
TONY FERREIRA – Grandalhão (dono de lojas de fliperama, ajuda Sérgio na investigação)
ZIEMBINSKI – professor de Filosofia de Rogério

– núcleo de SÉRGIO (Ney Latorraca), delegado de polícia, encarregado do setor de contrabando. Instala-se em um pequeno apartamento em frente ao Edifício Paraíso para investigar possíveis integrantes de uma quadrilha. Vive atormentado pela morte da irmã, envolvida com drogas. Sua dedicação à profissão fez com que sua noiva o abandonasse, relegando-o a uma vida solitária. Ao longo da trama, encarrega-se também do sequestro de uma moradora do prédio:
a ex-noiva CLEIDE (Carmem Monegal, participação), que não compreendia sua dedicação excessiva ao trabalho. Abandonou-o por sentir-se preterida
os policiais GURGEL (Antônio Ganzarolli) e CAIO (Paulo Gonçalves), seus auxiliares nas investigações,
e GRANDALHÃO (Tony Ferreira), dono de lojas de fliperama, ajuda-o nas investigações.

– núcleo de EDGARD (Leonardo Villar), industrial, proprietário do Edifício Paraíso. Construiu o prédio no terreno pertencente à família de sua mulher, com quem se casara por interesse. Esconde seu passado humilde a qualquer preço. Seu universo está centralizado no apartamento e na metalúrgica que dirige. Morador da cobertura:
a mulher MAFALDA (Maria Fernanda), de família tradicional paulista, nasceu e cresceu no palacete derrubado para a construção do Edifício Paraíso. Pedante, soberba e obcecada por dinheiro, despreza a mistura de classes, por isso evita se relacionar com os vizinhos. Controla os passos do marido
a filha ESTELA (Lídia Brondi), adolescente que não compartilha os mesmos princípios e ideias dos pais. Luta para se impor diante do mundo tradicional da mãe e da alienação do pai. É sequestrada no decorrer da trama
a empregada ARLETE (Heloísa Raso)
a mãe OLÍMPIA (Lourdes Mayer), mantida em um pensionato para idosos. Representa um passado que ele não deseja revelar. Por isso, apesar dos apelos, nunca foi apresentada à nora e à neta
a acompanhante de Olímpia, MARIA (Pepa Ruiz).

– núcleo de MARTA (Glória Menezes), ex-freira, viúva, tem um filho pequeno, deficiente intelectual. Enfrenta o preconceito e a intolerância dos moradores, que, importunados pelos gritos do menino durante a noite, desejam expulsá-lo do edifício. O sofrimento e a ausência de vaidade fazem com que aparente mais idade do que tem. Apesar de tudo, é uma mulher forte, que incomoda as pessoas com sua franqueza. Moradora do apartamento 104:
o filho PAULINHO (Marcos Andreas Harder), criança de 11 anos, deficiente intelectual. Doente, não se locomove, nem fala, e tem pouco tempo de vida. Sofre de crises em que grita durante a noite
o marido falecido HENRIQUE (Otávio Augusto, participação), aparece em flashbacks. Foi funcionário do Ministério da Agricultura. Quando morreu, deixou uma pequena herança para a família, com a qual Marta comprou o apartamento.

– núcleo do professor GILBERTO (Walmor Chagas), antropólogo, escreve uma tese sobre a cidade de São Paulo e seus aspectos humanos. Homem comunicativo e compreensivo, sempre atento aos direitos da comunidade. Por causa dessas características, funciona como uma espécie de cérebro do Edifício Paraíso. Morador do apartamento 901:
a mulher LÚCIA (Isabel Ribeiro), pintora, culta, mas uma mulher simples. Principal admiradora do marido, não suporta o preconceito e a intolerância que norteiam alguns moradores do Edifício Paraíso. Está sempre procurando manter o equilíbrio familiar
os filhos: MARINA (Françoise Forton), estudante de Comunicação, herdou dos pais o senso de justiça. Não tolera qualquer ameaça ao direito do outro. Defensora da posição atuante da mulher no mundo contemporâneo,
GUILHERME (Guto Franco), namoradinho de Estela. Adolescente inteligente, deseja ingressar na faculdade de Física,
e BENTO (Ricardo Garcia), menino esperto e muito crítico, seu sonho é apostar uma corrida de bicicletas no Minhocão, que fica em frente ao Edifício Paraíso.

– núcleo de OTÁVIO (Edson França), homem preconceituoso e intolerante, funcionário aposentado de uma empresa estatal. Reserva dois quartos de seu apartamento para os diversos cachorros que cria. Síndico do Edifício Paraíso, controla a vida de todos os moradores. Sente-se humilhado pela superioridade de Edgard e incomodado pela inferioridade de alguns proprietários e inquilinos. Morador do apartamento 902:
a mulher DOROTÉIA (Regina Viana), bonita e sensual, compensa suas frustrações do casamento em visitas infindáveis a salões de beleza. Nutre uma paixão secreta por um vizinho mais jovem e bonitão
a empregada JACIRA (Maria das Graças), um tanto indolente, desafia as regras impostas pelo síndico, pois sabe que a patroa não pode dispensar seus serviços.

– núcleo de AGENOR (Rubens de Falco), bancário, tenta esconder de todos, inclusive dos pais, a sua homossexualidade. Leva uma vida dupla. Durante o dia, é discreto, formal, sisudo e introspectivo. À noite, veste-se de mulher para, escondido dos vizinhos, sair do prédio e perambular pelos bares, divertindo-se com a observação do comportamento alheio. Morador do apartamento 801:
os pais: SEBASTIÃO (Castro Gonzaga), fazendeiro aposentado, vive da nostalgia do campo, que abandonou por causa do filho. Homem simples, passa os dias sentado no saguão do edifício procurando se relacionar com os vizinhos, que passam sem lhe dar muita atenção,
e BRANCA (Ida Gomes), mulher resiliente e religiosa, preocupa-se com a felicidade do filho, que acredita ser a sua cruz.

– núcleo de ORLANDO (Marcos Paulo), médico recém-formado, trabalha no posto de saúde em um bairro pobre da cidade. Competente, tem plena consciência de sua responsabilidade social. Mulherengo, mantém romances passageiros com vizinhas do Edifício Paraíso, sem nunca assumir um compromisso. Alvo do desejo de Dorotéia. Morador do apartamento 702:
o amigo ROGÉRIO (João Paulo Adour), com quem divide o apartamento. Namorado de Marina, veio do interior para estudar em São Paulo. Recém-formado em Arquitetura, trabalha em uma grande empresa. Adaptado à vida na cidade grande, incomoda-se apenas com a poluição sonora e a poluição visual.

– núcleo de DÉBORA (Tereza Rachel / Miriam Ficher em flashbacks), atriz decadente, mulher fútil e vaidosa. Sofre com a solidão e a insegurança. Apesar de manter sua beleza, não suporta a ideia de envelhecer. Por isso, recusa- se a revelar sua idade. Nutre um amor platônico por Gilberto. Moradora do apartamento 802:
a amiga ALBERTINA (Ruth de Souza), antiga empregada de sua casa, herdou uma pequena fortuna com a morte do patrão. Prevendo a decadência da atriz, que sempre esbanjou seu dinheiro, comprou o apartamento em que vivem. Espécie de dama de companhia de Débora, protege-a como se fosse sua filha, mas, para outros, é apenas sua empregada de confiança. Deixa que os vizinhos pensem que a atriz é a dona do imóvel
o pai falecido DAVI (Francisco Dantas, participação), aparece em suas recordações.

– núcleo de DONA CARMEM (Yara Cortes), viúva, mulher severa e desagradável. Sem papas na língua, intromete-se na vida dos vizinhos, com quem discute frequentemente. Divide o apartamento com a família do filho, mas faz questão de deixar claro que a está hospedando. Desconfiada, mantém os armários de casa trancados e chega a colocar cadeado na geladeira. Moradora do apartamento 701:
o filho MÁRIO (Roberto Pirilo), formado em contabilidade, trabalha como subgerente em uma agência bancária. Esforça-se para sustentar a mulher e os filhos pequenos. Não desafia a pressão materna, mas sonha em morar com a família em um apartamento próprio
a nora LAÍS (Suely Franco), mulher de Mário, vive uma crise em seu casamento, resultado da opressão que a sogra exerce sobre a família. Luta para salvar o casamento e o marido, dominado pela mãe, mas tem consciência de que isso só será possível quando se afastarem
a empregada NAIR (Jacyra Silva), perseguida e vigiada pela patroa, que desconfia de sua idoneidade.

– núcleo de PILAR (Elizabeth Savala), jovem bonita e ambiciosa, estudante de Medicina. Filha do zelador do Edifício Paraíso, mora no apartamento 1, no térreo. Sonha ser rica e, para isso, tenta seduzir Edgard, proprietário do prédio. Acaba envolvendo-se com o investigador Sérgio:
os pais: FRANCISCO (Sebastião Vasconcelos), zelador do Edifício Paraíso, veio do Rio Grande do Norte para trabalhar na construção do prédio. Exigente com os empregados, mantém a ordem no edifício como se fosse o dono do imóvel
e SOCORRO (Eloísa Mafalda), mulher simplória e religiosa. Vive amargurada pois sonha voltar para o Nordeste. Preocupa-se com a beleza da filha, que incomoda as moradoras.

– núcleo de LÁZARA (Chica Xavier), cozinheira de Edgard e Mafalda, mora no apartamento 2, no térreo. Preocupada com a educação do filho. Sua maior alegria é ter saído da favela:
o filho JAIRO (Cosme dos Santos), rapaz inteligente, vende flores nas ruas para ajudar no orçamento doméstico, mas esconde da mãe a maioria do dinheiro que recebe. Reclama que preferia ter ficado na favela, onde estão seus amigos.

– núcleo de OSVALDO (Flávio Migliaccio), porteiro e faxineiro do Edifício Paraíso, costuma esconder de Francisco os deslizes inocentes de alguns moradores. Mora na periferia:
a mulher CLEONICE (Carmem Alvarez), vive com o medo permanente de ser assaltada.

– demais personagens:
KÁTIA (Yoná Magalhães), moradora do apartamento 101. Desquitada, bonita, vaidosa e liberada, desperta os comentários maldosos dos vizinhos, que não aprovam seu comportamento. É sobrevivente do incêndio que destruiu o Edifício Joelma, no Centro de São Paulo, em fevereiro de 1974. As lembranças da tragédia ainda a atormentam. Trabalha em uma grande loja como secretária executiva. Sente-se atraída por Agenor
MIDORI (Midori Tange), moradora do apartamento 102. Veio do Japão ainda criança acompanhando os pais, que trabalham como agricultores no interior. A busca por melhores oportunidades a levou para São Paulo. Trabalhando como aeromoça, revende pérolas e objetos que traz do Japão para os vizinhos. Na verdade, faz contrabando
CORRÊA (Tonico Pereira), tipo misterioso que visita Midori com frequência. Ao longo da trama, revela-se que é chefe de uma quadrilha de contrabandistas.

Autor incompreendido

Assim Jorge Andrade definiu sua novela: “O paraíso de se viver em São Paulo. O retrato dessa realidade. A vida nas suas vinte e quatro horas de correria, poluição, gente se esbarrando e nem sentindo, solidão, superpopulação e potencialidades, marginalidades e neurose.” (“Memória da Telenovela Brasileira”, Ismael Fernandes)

Infelizmente a proposta não foi bem aceita. Mesmo com um argumento promissor, ancorado em um elenco de peso, e o sucesso da estreia como novelista com Os Ossos do Barão (1973-1974), Jorge de Andrade não obteve êxito com O Grito e conquistou fama de incompreendido no meio televisivo.

A história propunha esboçar um retrato da vida em São Paulo, já uma megalópole caótica em 1975, a partir do convívio entre os moradores do Edifício Paraíso (a ironia do nome!), erguido no centro da cidade por uma família quatrocentona, mas que se desvalorizou com a construção do Minhocão – o então Elevado Presidente Costa e Silva, hoje rebatizado de Elevado Presidente João Goulart.

Título

A trama se iniciava com o impasse entre os moradores do edifício em expulsar ou não uma nova condômina, a ex-freira Marta (Glória Menezes), mãe de um menino com deficiência intelectual que gritava durante a noite, o que incomodava os vizinhos. Daí o título da novela. Por meio do filho doente de Marta (Glória Menezes), foi abordada a discriminação e o preconceito contra autistas.

O título remete ao Expressionismo, corrente que permeou algumas das obras de Jorge Andrade no teatro, em uma relação direta com o quadro “O Grito” (1893), do pintor norueguês Edvard Munch, uma das obras mais importantes do movimento expressionista, tendo se tornado um ícone cultural.

De acordo com Sabina R. Anzuategui (em sua tese de doutorado “O Grito de Jorge Andrade”), a novela se vale dessa alegoria para a distinção entre os clamores importantes (humanos, emocionais) e os ruídos que apenas incomodam e não possibilitam reflexão e amadurecimento. (“Como a Ficção Televisiva Moldou um País”, Lucas Martins Néia)

Com sua proposta narrativa de subjetivar a realidade, O Grito pode ser considerada, portanto, uma representante do Expressionismo na telenovela brasileira.

Indignação

O Grito provocou as mais diversas reações. No Rio de Janeiro, aparentemente influenciados pela novela, moradores do edifício São Joaquim (na rua Barão de Jaguaripe 133, em Ipanema) tentaram expulsar um menino deficiente, Rubens de Oliveira Paes Mastabi, então com 12 anos, que, como o garoto da ficção, sofria de surtos em que gritava, além de agir violentamente. (jornal O Globo, 14/02/1976, pesquisa: Sebastião Uellington Pereira)

Em São Paulo, a história causou indignação, porque julgou-se que o objetivo do autor era criticar a capital paulista. Jorge Andrade rebateu, argumentando que sua intenção foi mostrá-la como é na realidade: “dura, fechada, fria”. O protesto chegou no Congresso Nacional, onde o então deputado federal Aurélio Campos fez um pronunciamento contra o que ele qualificava de “distorção da imagem de São Paulo”. (Site Memória Globo)

Além de Marta e seu filho deficiente, outros dois personagens chamaram a atenção: Agenor (Rubens de Falco), homossexual reprimido que morava com os pais conservadores e se travestia à noite, escondido de todos; e Kátia (Yoná Magalhães), sobrevivente fictícia do incêndio real que destruiu o edifício Joelma, no centro de São Paulo, em fevereiro de 1974. Apesar do trauma, Kátia protagonizou uma cena polêmica: fez um striptease na sacada de seu apartamento, causando um engarrafamento no Minhocão.

Apesar de toda a problemática envolvendo a novela, O Grito hoje é reconhecida pela ousadia de Jorge Andrade, um dramaturgo cultuado no meio artístico e acadêmico. Já há alguns anos ventila-se a ideia de produzir um remake (principalmente a partir da década de 2010, quando começou-se a discutir em São Paulo o destino do Minhocão).

Recurso temporal

Sem ser informado sobre a unidade de tempo da história, o telespectador foi surpreendido no final da novela ao descobrir que a trama toda se passou em uma única semana. O autor teve o cuidado de não deixar o público perceber esse detalhe durante os seis meses de exibição.

O recurso temporal foi explicado em um diálogo no roteiro:
“Estava me lembrando… Já pensou quanta coisa aconteceu nesta semana! Foi sexta-feira passada, exatamente há uma semana, que o síndico participou o roubo do interceptador. E quantas coisas não aconteceram em apenas seis dias!”

Como exemplo dessa compactação de tempo, toma-se o episódio do sequestro da adolescente Estela (Lídia Brondi). O sequestro dura dois dias na trama, mas estendeu-se por quinze capítulos em três semanas na exibição.
(“O Grito de Jorge Andrade: a experiência de um autor na telenovela brasileira dos anos 1970”, Sabina R. Anzuategui)

Jorge Andrade voltou a usar esse recurso narrativo em sua próxima novela, Gaivotas (Tupi, 1979), trama de 131 capítulos cuja história toda se passava em um espaço de dez dias.

Edifício Paraíso

O principal cenário da trama era o fictício Edifício Paraíso, bem no centro de São Paulo, construído no passado por uma família aristocrata, mas que se desvalorizou com a construção do Elevado Presidente Costa Silva, popularmente conhecido como Minhocão, bem à sua frente. Hoje rebatizado de Elevado Presidente João Goulart, o Minhocão foi inaugurado em janeiro de 1971, quase cinco anos antes da novela.

Todas as classes sociais estavam representadas no edifício, o que gerava os conflitos. Os mais pobres (muitos, empregados de seus vizinhos ricos) eram moradores dos andares mais baixos, que davam de frente para o elevado. Quanto mais se subia no prédio, maior o valor do imóvel e a classe social do morador. Os donos do edifício, soberbos remanescentes da aristocracia paulistana, moravam na cobertura.

Naturalmente, o Minhocão serviu de locação para O Grito. Já a fachada do Edifício Paraíso foi montada em frente à TV Globo, no bairro do Jardim Botânico, no Rio de Janeiro. (Site Memória Globo)

Três finais gravados

A Globo gravou três finais para o maior mistério da trama de O Grito, desvendado apenas no último capítulo: “Quem roubou o interceptador do prédio?”, aparelho que permitia que as ligações telefônicas dos condôminos fossem monitoradas.

Em um dos finais, o ladrão era o antropólogo Gilberto (Walmor Chagas), já que, conhecendo os segredos do moradores do prédio, colheria dados para o livro que estava escrevendo.

Em outro final, o síndico Otávio (Edson França) roubava o interceptador a fim de usar os segredos dos condôminos para ameaçá-los, caso impedissem a expulsão de Marta (Glória Menezes) do Edifício Paraíso.

No final que foi ao ar, Marta furtou o aparelho pois, sabendo dos segredos de seus vizinhos, poderia usá-los para garantir sua permanência no edifício. Por causa da doença de seu filho, ela já havia sido expulsa de outros prédios e jurou que faria de tudo para não sair do Edifício Paraíso.

“Insinuando que sabia os segredos de cada um, eu estava tentado fazer com que ouvissem os seus próprios gritos e esquecessem os do meu filho”, confessou Marta ao delegado Sérgio (Ney Latorraca). (revista Ilusão, abril de 1976, pesquisa: Sebastião Uellington Pereira)

Elenco

Glória Menezes passava a atuar sem a companhia de seu marido Tarcísio Meira, depois de seis anos e cinco novelas consecutivas interpretando com ele o casal romântico (Rosa Rebelde, Irmãos Coragem, O Homem que Deve Morrer, Cavalo de Aço e O Semideus, entre 1968 e 1974).

A atriz Elizabeth Savala atuou grávida de seu primeiro filho, Thiago, do casamento com o ator Marcelo Picchi. Como a atriz vivia uma jovem solteira na trama, não seria possível fazer a personagem engravidar também, já que a censura do Regime Militar não permitiria. A partir da metade da novela, com a barriga já grande, a atriz passou a ser mostrada de ângulos e planos que não revelassem sua gravidez. De acordo com Savala, a novela teve seu último dia de gravação em 25/04/1976 e o seu filho nasceu dez dias depois, em 05/05.

Walter Avancini implantou a novela e dirigiu o início, passando depois o comando a Gonzaga Blota e Roberto Talma, que estreava em direção na Globo. Talma declarou em entrevista ao Projeto Memória Globo sobre as dificuldades com O Grito e sua ambientação claustrofóbica:
“O processo dela era absolutamente existencialista. […] Ela tinha uma metodologia de repetição de texto, que era uma coisa bonita do Jorge Andrade, mas leva-se um tempo pra perceber isso. […] Eu tinha dificuldade em algumas coisas, ficava às vezes perdido, tinha que estudar muito pra sair daquela ostra. […] era uma novela absolutamente hermética, muito fechada. Ausente de grandes voos com relação ao que nós fazemos hoje […] o respiro que a gente normalmente faz.”

Primeira novela das atrizes Heloísa Raso, Miriam Ficher (com 11 anos na época) e Lídia Brondi (com 16 anos).

Lídia Brondi vivia a adolescente Estela, que namorava o garoto Guilherme, interpretado por Guto Franco (também com 16 anos na ocasião), filho do apresentador e cantor Moacyr Franco, que estava com um programa na Globo na época – o Moacyr TV, exibido aos domingos à tarde. Depois da novela, Guto Franco passou a trabalhar diretamente com o pai, principalmente como diretor em seus programas de TV.

Agenor foi um dos primeiros personagens LGBTQIA+ das novelas e sua escalação foi complicada. Primeiro o papel foi oferecido a Leonardo Villar, que o recusou (Leonardo ficou com outro personagem: Edgard). Depois a Mauro Mendonça, novamente recusado. Fúlvio Stefanini também não quis interpretá-lo. Cogitou-se Emiliano Queiroz, mas o diretor Daniel Filho o queria para a próxima novela das oito, Pecado Capital. Por fim, o “personagem maldito” (como foi chamado pela imprensa na ocasião) ficou com Rubens de Falco, que o viveu brilhantemente. (Jornal do Brasil, 27/06, 16/07 e 29/09/1975, pesquisa: Maurício Gyboski)

O ator Mário Gomes, mal concluído seu trabalho na novela Gabriela, foi escalado para emendar com O Grito, no papel do jovem médico Orlando. O ator já havia gravado algumas cenas e sua escalação estava sendo noticiada pela imprensa, quando foi diagnosticado com hepatite e acabou substituído por Marcos Paulo. (revista Romântica, edição 195, pesquisa: Sebastião Uellington Pereira)

Outras escalações confirmadas pela mídia na época, mas que não se concretizaram: Nathália Timberg, Maria Della Costa, Lélia Abramo e Stênio Garcia. (Jornal do Brasil, 27/08, 02/09 e 04/09/1975, pesquisa: Maurício Gyboski)

Trilha sonora

Por incluir na trilha sonora nacional da novela grandes nomes de nossa música (como Elis Regina, Rita Lee, Ângela Maria, Cassiano, Victor Assis Brasil e Radamés Gnatalli), Nelson Motta, que assinou a direção de produção do disco, revelou ao livro “Teletema, a História da Música Popular Através da Teledramaturgia Brasileira” (de Guilherme Bryan e Vincent Villari): “Acho que poucas vezes se viu uma trilha de novela tão sofisticada como essa!”

Em 2001, a Som Livre relançou a trilha sonora nacional de O Grito, em CD, na coleção “Campeões de Audiência”, 20 trilhas nacionais de novelas campeãs de vendagem nunca antes lançadas em CD (títulos até 1988, pois no ano seguinte foram lançados os primeiros CDs de novelas).

A trilha internacional de O Grito é a campeã de vendas entre as trilhas de novelas das dez da Globo: 164.892 cópias. (fontes: Vincent Villari, Som Livre e ABPD)

Abertura e logotipo

A abertura de O Grito foi produzida em São Paulo, pela Blimp Film de Joaquim 3 Rios, expoente da animação publicitária no Brasil. Contudo, para o logotipo da novela, foi usado o alfabeto estilizado criado pelo designer Hans Donner, então iniciando sua carreira na TV Globo. No logo, as letras de “o grito” estão “esticadas” verticalmente, remetendo ao formato de prédios.

A abertura exibia o logotipo se movimentando na tela e, dentro dele, tomadas da cidade de São Paulo, com edifícios, viadutos, avenidas, carros e pessoas nas ruas, além de atores do elenco: Glória Menezes, Walmor Chagas, Yoná Magalhães, Leonardo Villar, Tereza Raquel e Edson França.

O Grito foi a primeira novela da Globo a exibir merchandising de uma marca em sua abertura. Intencional ou não, entre as imagens captadas da paisagem urbana de São Paulo, a câmera focalizou uma agência do Banco Bamerindus e um outdoor dos jeans Levi’s.

Exibição

Chamada da novela: “O Grito! Quando a sua intimidade está ameaçada!”

Texto narrado na apresentação das cenas do próximo capítulo da novela (prática comum na época):
“O Grito! O homem pressionado pressionando, sofrido sofrendo…calado gritando… O grito de todos, o grito de cada um.”

A Globo exibiu um compacto dos cinco primeiros capítulos no domingo após a primeira semana da novela (em 02/11/1975), depois do Fantástico. (jornal O Globo, 02/11/1975, pesquisa: Sebastião Uellington Pereira)

No último capítulo, após cenas do velório e cremação do menino Paulinho, a novela terminou com imagens aéreas da cidade de São Paulo, ao som de gritos e a mensagem: “E a semente vai germinar, brotar, crescer, florescer e dará frutos!”.

O Grito foi disponibilizada no Globoplay (plataforma streaming da Globo) em 19/08/2024, dentro do Projeto Fragmentos, com os 3 capítulos que restaram nos arquivos da Globo: o primeiro, o segundo e o último (de número 125).

Interpretação do final

Autora da tese de doutorado “O Grito de Jorge Andrade”, Sabina R. Anzuategui assim interpreta o final da novela (em entrevista ao site Pop Fantasma, 24/08/2018):

“Há uma relação na obra entre Marta (mãe de Paulinho) e Jorge Andrade. Os dois desejam que ‘uma parte de seu filho’ fique dentro de cada pessoa depois que ele morrer. No caso de Jorge, o ‘filho’ é a novela, e a ‘morte’ é o último capítulo. Do mesmo modo que os moradores querem expulsar Paulinho, parte do público rejeitou a novela. Então Jorge Andrade declara metaforicamente que não adianta fechar os olhos para o que não queremos ver. Há sempre alguém corajoso (ele/Marta), que perseguirá em sua missão, dizendo as coisas que precisam ser ditas.”

Trilha sonora nacional

01. LÁ VOU EU – Rita Lee (tema geral)
02. UM POR TODOS – Elis Regina
03. A LUA E EU – Cassiano (tema de Sérgio e Pilar)
04. TEMA EM 5/4 – Victor Assis Brasil
05. NOITE VAZIA – Ângela Maria (tema de Marta)
06. O GRITO – Victor Assis Brasil (tema de abertura)
07. AMOR, AMOR – Marília Barbosa (tema de Pilar)
08. NÃO CORRA ATRÁS DO SOL – Luiza Maria (tema de Estela e Guilherme)
09. BERCEUSE – Trio Radamés Gnattali
10. SABOREAREI – Luli e Lucinha
11. VICE-VERSA – Victor Assis Brasil

Sonoplastia: Paulo Ribeiro
Coordenação geral: João Araújo
Direção de produção: Nelson Motta
Assistentes de produção: Márcio Augusto e João Mello

Trilha sonora internacional

01. TRUE LOVE – Steve McLean (tema de Sérgio e Pilar)
02. INSEPERABLE – Natalie Cole
03. BREEZY – The Jackson Five
04. FLY ROBIN, FLY – Silver Convention
05. E SIAMO QUI – Wess & Dori Ghezzi (tema de Laís e Mário)
06. TIME IS OVER – Harris Chalkitis
07. HEY GIRL (TELL ME) – Bobby Wilson
08. TENDERNESS – Twins (tema de Marina)
09. SO IN LOVE WITH YOU – Leroy Hutson (tema de Rogério)
10. WE WILL MAKE IT TONIGHT – Carol Douglas
11. ERA GIÁ TUTTO PREVISTO – Riccardo Cocciante (tema de Débora)
12. PICTURE US – Bunny Sigler (tema de Kátia e Agenor)
13. ISLAND GIRL – Elton John
14. EVERYDAY I HAVE TO CRY SOME – Arthur Alexander

Coordenação geral: João Araújo
Seleção de repertório: Toninho Paladino

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