
Repercussão, danos à imagem, pedido por transparência, atualização de contratos antigos e até a possível abertura de um processo. Esses foram os resultados imediatos provocados por um simples comentário feito pelo ator Matheus Solano nas redes sociais sobre quanto ele ganhará pela reprise da novela Viver a Vida, que reestreia ainda esse mês no Canal Viva, das Organizações Globo.
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A queixa, no entanto, é antiga. Porém, a insatisfação quase sempre ficava restrita a “boca pequena” circulando somente em fechadas rodas de atores, que evitavam manifestar suas queixas para a administração da emissora, para a justiça e para o público. Foram raríssimos os registros dessas contrariedades em proporção ao grande número de envolvidos.
Afinal, a maioria dos consagrados fazia parte do elenco permanente do canal, com confortáveis salários e recebidos inclusive quando não estavam no ar. E os que não eram funcionários, receavam em fechar as portas para uma futura oportunidade de integrar esse cast.
Já demitidos, atores perdem o medo
Agora, o receio de represália diminuiu após a decisão da Rede Globo de demitir quase todos os atores exclusivos, optando pela contratação temporária apenas por obra feita. A cúpula não contava com os efeitos colaterais que começam a ser sentidos no dia a dia dificultando a sua administração.
Com a exigência de manter percentual de produto local, os streamings estrangeiros avançam em cima desse contingente de estrelas consagradas pela própria Globo e que estão agora disponibilizados no mercado pelas dispensas da família Marinho. Com isso, acabam também com o trunfo da Globoplay, para enfrentar as entradas das estrangeiras plataformas de conteúdo. Agora qualquer uma das concorrentes pode ter acesso a esse banco de estrelas disponibilizado pela Globo.
Dificuldade em escalar elencos
Está cada vez mais difícil compor os elencos das novelas no Projac. Antes, com participações quase inteiramente estelares, agora, nas produções mais recentes, escasseiam essas presenças de impacto. Por isso, boa parte dos personagens são preenchidos por atores menos conhecidos pelo grande público, refletindo em sua audiência.
Na realidade atual, quando tentam fechar um contrato por obra, os atores mais famosos pedem valores mais altos por seus cachês como forma de compensar o que recebiam o ano inteiro. Já outros na hora do convite já estão compromissados em atividades desenvolvidas pela concorrência.
Recusas de entrevistas e participações especiais
Outro reflexo é a escassez dos artistas mais famosos em outros conteúdos da casa. A Globo sempre fez uso de seu poderoso elenco exclusivo para alavancar as audiências de seus programas de auditório, de variedades e até no jornalismo. O que era pelas estrelas como parte da contrapartida pelo contrato fixo, agora, esses profissionais não se sentem mais na obrigação de dar entrevistas ou manter presenças nessas atrações.
E vale até mesmo para novos projetos de valor afetivo para os próprios artistas. Foi o que inviabilizou a produção de um especial para marcar os 30 anos da novela A Viagem. Sem contrato fixo, alguns dos protagonistas exigiram seus próprios valores de cachê para participarem.
Isso resulta em prejuízo escalonado. É que esse material estava sendo desenvolvido para gerar negócios complementares. Iria também passar no Canal Viva, negociado para países onde a novela de Ivany Ribeiro foi sucesso, usado como portfolio em feiras de venda de conteúdos internacionais, além de disponibilizado no catálogo da Globoplay.
O estopim Solano
Matheus Solano foi contratado da emissora por duas décadas, sendo dispensado no ano passado, assim como várias outras estrelas. A repercussão sobre quanto ganharia com a reprise de Viver a Vida fez a empresa quebrar a sua tradição de não responder pontualmente a provocações. Emitiu, logo após a repercussão, um comunicado oficial.
“A Globo efetua todos os pagamentos referentes aos direitos autorais e conexos devidos a autores, diretores e atores, em obras reexibidas na TV Globo ou exibidas nos canais pagos e no Globoplay, de acordo com os contratos celebrados com cada um”, explica a justificativa.
Com a visibilidade exposta pelo ator, o Sindicato dos Artistas e Técnicos do Rio de Janeiro também se posicionou. Considerando muito baixo o valor pago pelas obras reexibidas, pretende discutir e renegociar novos termos com a emissora e se preciso, entrar na justiça.
Efeito Nostalgia
A questão crucial é que a base desses acordos, e boa parte dos documentos foram estabelecidos e assinados, em um contexto bem diferente do atual. Praticamente só existiam as vendas para o exterior e uma única reprise dentro do Vale a Pena Ver de Novo. Hoje, só na Rede Globo existem três faixas: no início e final das tardes de obras mais antigas e nas madrugadas com a reexibição da novela da faixa das 19h.
Fica nítido o interesse do público por histórias nostálgicas. Parte desse processo de valorização deu-se pelo período de pandemia quando antigas trama ocuparam, pela primeira vez, as três faixas de novelas do horário nobre. O bom trabalho de seleção, tratamento e marketing desenvolvidos pela equipe do Viva também ajudou a alavancar o interesse.
Para alavancar as audiências de outros canais do grupo, reprises foram escaladas também para o GNT e Futura. Com a criação da Globoplay, as novelas foram elencadas a carro-chefe da estratégia da família Marinho. São consideradas o único trunfo capaz de enfrentar o farto conteúdo estrangeiro das concorrentes deste segmento liderado pela gigante Netflix.
Nem só as reprises ganham protagonismo. Pautada pelo interesse do público em histórias do passado, nunca se viu nos Estúdios Globo tantos remakes como nos últimos anos. E até mesmo as novas empresas streaming buscam audiência apostando na memória afetiva do brasileiro com as regravações de Dona Beja – pela plataforma pela Max e Pai Herói – de Janete Clair – pela HBO. Esse movimento sinaliza a estratégia dessas organizações internacionais em disputar o formato telenovela com a família Marinho.
Revisão de contratos antigos
Existe uma grande complexidade na mensuração de fatores altamente subjetivos na discussão dos direitos autorais e conexos. Entre eles, como dividir os percentuais entre o elenco? Por ser uma obra aberta, seu desfecho vai sendo alinhavado de acordo com a resposta do público e conforme os desempenhos dos artistas com seus personagens.
Ao contrário de um filme ou uma série, onde os papéis e hierarquias entre o elenco já são previamente definidos e engessados, na telenovela essa previsão raramente se estabelece na prática. São muitos os casos em que estreantes, coadjuvantes e secundários roubam as cenas dos protagonistas, fazendo com que os autores aumentem suas participações. Às vezes, acabam assumindo a função do papel principal durante o desenvolvimento da trama, mas mantendo o cachê inicial mais baixo.
Pelos cálculos atuais, os valores são definidos por uma série de fatores, entre eles os salários. Isso faz com que protagonistas que não decolaram recebem bem mais do que aqueles menos afortunados que levaram a trama nas costas.