“Povo de Sucupira!” Começam sempre assim os discursos inflamados de demagogia, verborragia e mau-caratismo de Odorico Paraguaçu (Paulo Gracindo), prefeito da fictícia cidade litorânea de Sucupira, na Bahia, em O Bem-amado, novela de Dias Gomes que completa 50 anos de sua estreia neste domingo (22).
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Originada de um texto teatral do autor, intitulado Odorico, o Bem-amado, ou Os Mistérios do Amor e da Morte, escrito no começo dos anos 1960 e encenado em algumas ocasiões, a novela ficou marcada na história da televisão brasileira não apenas por seu grande sucesso e sua coleção de personagens inesquecíveis, mas por ter sido a primeira gravada em cores por aqui, sob a direção de Régis Cardoso e produção e supervisão de Daniel Filho.
Fazendeiro e produtor de azeite de dendê, Odorico elege-se prefeito de Sucupira com a promessa de construir um cemitério municipal, já que os habitantes da cidade precisam ser enterrados em municípios vizinhos, como Jaguatirica, quando falecem.
Seus maiores correligionários são as solteironas Dorotéa (Ida Gomes), Dulcinéa (Dorinha Duval) e Judicéa (Dirce Migliaccio), as Irmãs Cajazeira, com quem ele mantém casos simultâneos, e o tímido Dirceu (Emiliano Queiroz), chamado de Dirceu Borboleta devido a seu apreço pelos lepidópteros, que coleciona e estuda.
De outro lado, existe quem tente abrir os olhos dos sucupiranos para a roubada que é ter Odorico na posição de prefeito. Donana Medrado (Zilka Salaberry), delegada em exercício que odeia o coronel, e sua neta Anita (Dilma Lóes), funcionária dos Correios; o dentista Lulu Gouveia (Lutero Luiz), derrotado nas eleições; e o jornalista Neco Pedreira (Carlos Eduardo Dolabella), dono da gazeta local, A Trombeta, são os principais integrantes da oposição.
No Brasil do regime militar, e com problemas flagrantes como a mortalidade infantil e a fome, especialmente numa cidade do Nordeste talvez não fosse crível que ninguém morresse, o que impedia Odorico de inaugurar o cemitério, logo tachado de inútil e “faraônico” pela oposição a seu governo. Aí é que estava um dos pontos da agudeza da crítica política desenvolvida por Dias Gomes em sua obra.
Outra figura importante no combate à sanha de Odorico pela morte – de qualquer pessoa, desde que com seu enterro pudesse inaugurar o cemitério – é Juarez Leão (Jardel Filho), médico de Salvador que se instala em Sucupira para cuidar do posto de saúde e se envolve com Telma (Sandra Bréa), filha do prefeito, que era sua vizinha quando morava na capital do estado.
Nem a presença de Zeca Diabo (Lima Duarte), um temido cangaceiro que volta a Sucupira após décadas de ausência, faz com que o prefeito consiga realizar seu intento. Isto porque o matador sanguinário decide abandonar a vida de crimes e tornar-se um homem pacato, como era antes de iniciar a série de assassinatos, motivada em princípio por uma “limpeza de honra” de sua família. O temor ao “Padim Pade Ciço Romão Batista” e o sincero desejo de viver em paz, quem sabe até trabalhando como protético, seu sonho de sempre, tornam o temível assassino uma figura que ganha o carinho do público.
Inescrupuloso e “maquiavelento”, Odorico marcou época na televisão brasileira até hoje, e seu linguajar cheio de palavras inventadas e expressões como “Vamos deixar de lado os entretantos e partir logo pros finalmentes”, “pratrasmente”, “prafrentemente”, entre outras, divertiu a audiência.
Além dos já citados, outros personagens inesquecíveis da novela são Zelão das Asas (Milton Gonçalves) com seu sonho de voar (“Quem tem fé, voa”), e sua mulher Chiquinha do Parto (Ruth de Souza); Nezinho do Jegue (Wilson Aguiar), que são é o maior fã de Odorico e bêbado torna-se seu maior detrator; Seu Libório (Arnaldo Weiss), o farmacêutico suicida que não consegue suicidar-se; o vigarista Jairo Portela (Gracindo Júnior); e a aérea Dona Florzinha (Suzy Arruda), mãe de Dirceu.
Já disponível no Globoplay, O Bem-amado é um dos grandes clássicos da teledramaturgia brasileira e segue atual – exemplos disso são as colagens de falas da novela com falas de políticos exibidas na rádio CBN há mais de 10 anos (no programete Rádio Sucupira) e a viralização na internet de trechos da novela nos quais Odorico arma para que remédios e vacinas enviados a Sucupira não cheguem à população, o que foi identificado com as atitudes do governo de Jair Bolsonaro.